Encerrado o ciclo de debates promovido pela Câmara dos Deputados sobre o PL 2630/20, já aprovado pelo Senado Federal, a Coalizão Direitos na Rede – articulação que reúne mais de 40 organizações acadêmicas e da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos digitais – gostaria de apresentar aos/às parlamentares um conjunto de sugestões ao texto em discussão, em contribuição para a elaboração de uma lei efetiva e democrática para enfrentar o fenômeno da desinformação. Tais propostas são baseadas em parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos e fruto de três meses de discussões com diferentes setores e atores, dentro e fora do Parlamento – com destaque para as relatorias da ONU e da OEA para a liberdade de expressão e o direito à privacidade.
Parte delas já foi tornada pública ao longo deste processo de tramitação. O positivo prazo de discussão sobre o PL aberto pela Câmara dos Deputados permitiu, entretanto, o necessário aprofundamento deste complexo tema e, consequentemente, o surgimento de novas proposições, que agora compartilhamos. Reforçamos, assim, os posicionamentos divulgados anteriormente[1], ao passo em que trazemos novas contribuições para a etapa final de tramitação do projeto 2630 na Câmara – com destaque para os tópicos a seguir, detalhados e acrescidos de outros pontos no arquivo em anexo.
1. Escopo da lei
Considerando que as ferramentas de busca também estão sujeitas a uso para disseminação de conteúdo desinformativo, que também lucram com a exibição de anúncios e que também são significativamente opacas em relação a seus mecanismos de funcionamento, a Coalizão Direitos na Rede propõe que também sejam abarcadas no escopo da lei, visando que também cumpram as obrigações de transparência previstas no PL. Ao mesmo tempo, propomos uma maior racionalidade na determinação das grandes plataformas abarcadas pelo PL, a partir de uma definição que passe por sua atuação com fins econômicos e que com número de usuários proporcional à população do país, de modo que a lei não se torne ultrapassada rapidamente.
2. Identificação de usuários
Em diferentes artigos, o PL mantém a ideia de identificação geral de usuários para o uso de redes sociais e serviços de mensageria privada. O texto faz isso ao apresentar o conceito de “conta identificada” (Art. 5º, inciso I) e vinculá-lo às obrigações de identificação presentes nos artigos 7º e 8º do relatório. Por mais que a identificação agora esteja prevista para casos de “denúncias por desrespeito a Lei”, “indícios de contas automatizadas não identificadas como tal”, “indícios de contas inautênticas” e em caso de “ordem judicial”, ela segue para um contingente significativo de usuários, via simples denúncias, o que permite o abuso e massificação do procedimento. O PL prevê ainda, no Artigo 8o, “poder de polícia” às plataformas, obrigando-as a desenvolver medidas para “detectar fraude no cadastro e o uso de contas”.
Por fim, no Artigo 35, o PL propõe alterações no Marco Civil da Internet para obrigar a guarda de dados, também desproporcional, referentes a “portas lógicas” utilizadas por Ips. O conjunto de medidas vai contra preceitos constitucionais e também contra a Lei Geral de Proteção de Dados, que estabelece o princípio da coleta mínima dos dados necessários para uma finalidade, devendo, assim, ser suprimido do texto.
3. Rastreabilidade
A previsão do Artigo 10 sujeita o conjunto da população a alto risco diante de possíveis requerimentos abusivos de informações pessoais, medidas de mau uso de seus dados pelas empresas e vazamentos. Terão seus dados guardados obrigatoriamente pelos aplicativos todas as pessoas que, por razões legítimas ou involuntárias, participem das cadeias de compartilhamento de conteúdos, como jornalistas, pesquisadores, parlamentares e quaisquer cidadãos que, eventualmente, repassem uma postagem a fim de denunciá-la. Todas as mensagens que circularem mais nos aplicativos de mensagens serão consideradas suspeitas a priori e rastreadas, sem que haja um indício de ilegalidade.
Assim, caso haja um processo judicial envolvendo esses conteúdos, caberá às pessoas rastreadas o dever de explicar, a posteriori, sua não relação com as indústrias de disseminação de desinformação que o PL pretende atingir. Trata-se de grave violação ao princípio da presunção de inocência e que, sim, pode impactar no exercício da liberdade de expressão e comunicação nos aplicativos de mensageria privada, devendo ser suprimido integralmente do PL..
4. Liberdade de expressão dos usuários
A redação do Artigo 12, que tem o objetivo de garantir o devido processo na moderação de conteúdos por parte das plataformas – incluindo aí mecanismos de notificação e direito de defesa dos usuários, importantes para o exercício da liberdade de expressão – requer aprimoramentos. A proposta de nova redação da CDR visa deixar mais claro o mecanismo proposto e oferece uma alternativa mais apropriada para o debate sobre a dinâmica de moderação de conteúdo por parte das plataformas: a de remeter ao Código de Conduta, previsto na lei, a definição de seu detalhamento. Assim, por um lado, não se engessa o devido processo no texto e, por outro, não se amplia involuntariamente o poder das plataformas sobre os conteúdos que podem circular ou não nas redes.
Ao mesmo tempo, a proposta explicita que a busca pela reparação pelo dano causado por eventual abuso na moderação de conteúdos não envolve indenizações financeiras. Por fim, também em defesa da liberdade de expressão dos usuários, a Coalizão Diretos na Rede propõe que o direito de resposta previsto no PL, que é constitucional, seja objeto de decisão judicial e tenha garantida a proporcionalidade em seu alcance.
5. Relatórios de transparência
O conjunto de propostas de emendas ao artigo 13 tem o objetivo, em primeiro lugar, de trazer maior clareza sobre as informações e dados que devem constar dos relatórios a serem apresentados pelas plataformas. Neste sentido, a Coalizão Direitos na Rede propõe ajustes de redação a alguns incisos e definições para os conceitos de “medidas de moderação” e “metodologias de detecção de irregularidades”, cuja interpretação poderia ficar em aberto por parte das plataformas, gerando insegurança jurídica.
Em segundo lugar, propomos a inclusão nos relatórios de informações essenciais não previstas no PL durante a tramitação no Senado. Tratam-se de dados sobre aferição de alcance de conteúdos impulsionados, publicidades e propagandas políticas; de moderações sobre contas geridas pelo poder público; e sobre o emprego e funcionamento de sistemas automatizados e algoritmos pelas plataformas. Num contexto em que a maior parte da ação das plataformas se dá por sistemas automatizados e por aprendizado de máquina, estes são dados essenciais para a averiguação se o uso que as empresas de tecnologia estão fazendo dos dados pessoais de seus usuários está de acordo com os princípios da lei em questão e do ordenamento jurídico brasileiro.
6. Impulsionamento e publicidade
As propostas trazidas nesta subseção buscam aprimorar dispositivos já propostos no PL assim como sanar lacunas referentes ao tema no projeto de lei. Uma delas sugere tratar de maneira diferente duas questões que estão misturadas na redação do Artigo 15, separando os dados que devem ser disponibilizados para o público, para fins de monitoramento da Justiça Eleitoral, cujo grau de transparência deve ser maior, e os conteúdos que mencionem candidatos ou partidos veiculados durante a campanha, que ficariam disponíveis para acesso em repositório por interessados.
Também propomos um reforço no papel das plataformas na identificação das contas que impulsionam conteúdos e de anunciantes nas redes sociais, de maneira a torná-las responsáveis solidariamente por eventuais danos causados por esses conteúdos caso tal identificação não seja possível. A Coalizão Direitos na Rede entende que, na medida em que lucram com a veiculação de tais conteúdos, as plataformas devem garantir a identificação dos responsáveis pelas contas que os difundem, para que quem se sentir lesado tenha mecanismos de chegar aos seus responsáveis. Por fim, propomos a inclusão de um novo artigo, para garantir que qualquer publicidade veiculada em redes sociais no Brasil, voltada ao público brasileiro, seja realizada por empresas com representação no Brasil, como forma de garantir o respeito à legislação em vigor no país.
7. Atuação do poder público
A CDR entende como central o enfrentamento do problema da monetização de conteúdo em canais nas redes sociais por parte de detentores de cargos eletivos. Muitas vezes, os conteúdos exibidos em tais canais contam com recursos públicos na sua produção e distribuição, enquanto os recursos auferidos com a monetização, via publicidade, não retorna aos cofres públicos. A Coalizão defende a vedação desta prática, assim como defende que a remuneração por publicidade advinda de contas de redes sociais durante campanhas eleitorais conste da prestação de contas das respectivas candidaturas.
8. Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet
A existência de um Conselho de caráter técnico e composição multissetorial é fundamental para o acompanhamento da implementação da lei e, sobretudo, como lócus estratégico para a elaboração do código de conduta para as plataformas digitais. Entretanto, o capítulo que trata do Conselho requer aprimoramentos de várias ordens. O primeiro é que, considerando seu caráter técnico, a CDR entende que o Código de Conduta que será elaborado pelo Conselho não deve ser submetido à aprovação do Congresso Nacional, o que conferiria status de norma infralegal a um documento que, devido à dinâmica da evolução tecnológica, deve ser revisado a cada dois anos. A medida também possibilitaria eventual ingerência política nas decisões do órgão.
Outro aprimoramento urgente é na composição do Conselho, que carece de equilíbrio numérico entre os setores representados e erra ao prever a participação de setores cuja atuação não está diretamente relacionada aos objetivos e princípios da lei. Cabe ainda sanar um inconstitucionalidade presente no PL, no Artigo 26, §4º, que veta que conselheiros sejam pessoas vinculadas ou filiadas a partido político, violando a liberdade de associação para fins lícitos.
9. Autorregulação regulada
No capítulo da autorregulação regulada, a Coalizão Direitos na Rede propõe o fortalecimento da ouvidoria prevista, com a inclusão de dispositivos mínimos para o atendimento dos usuários e o destaque do papel que o órgão deve cumprir na garantia da transparência e respeito aos direitos de usuários no caso do emprego de sistemas automatizados pelas plataformas.
10. Sanções
Trata-se de outro capítulo em que cabem aprimoramentos no projeto. A proposta da CDR tem o objetivo de explicitar que cabe ao Poder Judiciário a aplicação de sanções por violações à lei e de equilibrar e distribuir, também do ponto de vista das sanções, as responsabilidades por violações ao novo texto legal. No texto original, apesar de o PL trazer deveres para um conjunto de atores, a previsão de sanções se restringe às plataformas digitais. Neste sentido, a Coalizão Direitos na Rede propõe também a previsão de sanções para as entidades e órgãos da Administração pública, agentes políticos e candidatos de que trata o capítulo III da lei, assim como outros critérios que devem ser considerados pelo Poder Judiciário na aplicação do conjunto de sanções.
11. Jurisdição
O Artigo 32 do PL estabelece duas obrigações para as empresas multinacionais em operação no país incluídas no escopo da lei: (i) ter sede e nomear um representante legal no Brasil; e (ii) garantir acesso remoto, a partir do Brasil, aos seus bancos de dados para atendimento especialmente de ordens de autoridade judicial brasileira. A obrigação de ter uma sede no Brasil desconsidera a natureza global da Internet, que envolve a constante troca transfronteiriça de informações, e somente faz sentido em uma economia não digital. Tal medida pode levar à exclusão dos usuários brasileiros (consumidores ou empresas) dos serviços mais modernos e inovadores desenvolvidos e mantidos no exterior. Já o dever de acesso remoto obrigatório a dados, a partir do Brasil, não solucionará a disputa em curso em casos de jurisprudência compartilhada. Isso porque, por mais que o Marco Civil da Internet já determine que, em caso de dados ao menos coletados no Brasil, as empresas multinacionais devem entregá-los se a Justiça assim ordenar, as mesmas não o fazem por temerem ser responsabilizadas pela lei dos Estados Unidos, onde estão sediadas e onde armazenam os dados.
Ou seja, a solução unilateral de incluir este dispositivo vai esbarrar nos mesmos problemas que as requisições atuais, perdendo sua eficácia. Tal provisão também está em descompasso com os padrões internacionais de proteção de dados, ao não estabelecer qualquer provisão de cuidados com os dados e ao falar em “manter acesso remoto […] especialmente para atender a ordem judicial brasileira”, sugerindo que não é somente mediante ordens judiciais que tais dados poderão ser acessados. A proposta de redação alternativa da Coalizão Direitos na Rede propõe enfrentar o problema a partir do reconhecimento da soberania e da jurisdição do país sobre dados relacionados a brasileiros coletados no país assim como dos desafios da dimensão internacional da questão.
12. Exclusão digital
Por fim, cabe alterar a redação do Artigo 34, que modifica a lei de cadastramento de celulares pré-pagos para obrigar a apresentação conjunta de documento de identidade e número de CPF no cadastro de chips. Como temos visto durante a pandemia, para fins de acesso ao auxílio emergencial, exigir a apresentação dos dois documentos para a obtenção de um número pré-pago pode impactar diretamente no exercício do direito à comunicação destes cidadãos. Trata-se de uma medida desnecessária, excessiva e onerosa a brasileiros que não possuem as duas documentações regularizadas. Adicionalmente, o texto determina nova regulamentação sobre o cadastramento de usuários de telefones pré-pagos. A redação deve ser alterada para permitir um documento ou outro.
No PDF deste link, apresentamos o conjunto das emendas sugeridas, reafirmando uma vez mais nosso interesse e disponibilidade de seguir em diálogo, de modo a garantir que o Brasil aprove uma lei que aborde desafios significativos no funcionamento das plataformas digitais, mas sem violar direitos dos cidadãos e cidadãs.
Coalizão Direitos na Rede
01 de setembro de 2020
* Este conteúdo foi produzido como parte do projeto “Defender direitos digitais para assegurar a liberdade de expressão e a privacidade na Internet”, que tem o apoio da Fundação Heinrich Böll.
[1]http://plfakenews.direitosnarede.org.br/os-desafios-da-camara-dos-deputados-no-pl-das-fake-news/
http://plfakenews.direitosnarede.org.br/a-discussao-sobre-jurisdicao-no-pl-das-fake-news/