Órgão independente de supervisão das plataformas é essencial, mas não pode ser Anatel

A agência deve priorizar sua competência no setor de telecomunicações, que necessita de aprimoramentos e não se confunde com a regulação das plataformas

Recentemente, no contexto dos debates sobre a regulação das plataformas digitais e sobre necessidade de um órgão independente de supervisão, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tem se apresentado para ser o órgão preparado para assumir atribuições de fiscalização e regulamentação das plataformas[1]. 

Apontamos na nota abaixo cinco razões pelas quais a indicação da Anatel como autoridade supervisora das plataformas digitais deve ser inequivocamente rechaçada. Em resumo: a Anatel não tem a expertise necessária nos temas de regulação de plataformas, além de ter falhado recorrentemente no cumprimento de suas atribuições no setor de telecomunicações. Atribuir a regulação das plataformas à agência poderá agravar esse cenário, prejudicando o avanço da conectividade significativa no Brasil e levando os interesses econômicos das plataformas e empresas de telecomunicações a prevalecerem sobre os interesses dos usuários. Ainda, a Anatel é historicamente refratária à participação da sociedade civil, o que é incompatível com o modelo de governança multissetorial e colaborativa da internet no país. O que precisamos é de um órgão independente com um conselho multissetorial deliberativo.

Pontos da nota: 

1. A Anatel não possui atribuição legal para regular aplicações de internet e é reconhecida sua falta de expertise no assunto;

2. Assumir novas competências levarão a Anatel a negligenciar ainda mais seus deveres atuais, prejudicando o necessário avanço da conectividade significativa no Brasil e podendo levar a favorecimento dos interesses das plataformas;

3. A Anatel possui desempenho insatisfatório até mesmo para o seu setor;
3.1. Auditoria do TCU aponta falhas, ineficiência e falta de transparência na atuação da Anatel;
3.2. O cumprimento das metas de universalização da telefonia fixa pela Anatel foi insatisfatório;
3.3. O leilão e as obrigações do 5G foram desastrosos: tiveram inúmeras distorções, erros de precificação, compromissos de conectividade insuficientes e privilégios para as grandes operadoras. 3.4. A Anatel falhou em manter o controle do inventário do patrimônio público de bens reversíveis, gerando um prejuízo que pode chegar a R$ 100 bilhões ao tesouro público;

4. Ainda, a atuação da sociedade civil na Agência é extremamente dificultada e reduzida;

5. Portanto, precisamos de uma nova entidade autônoma de supervisão, apoiada por um conselho participativo multissetorial;

  1. A Anatel não possui competência para regular aplicações de internet e é reconhecida sua falta de expertise no assunto

Os arts. 60 e 61, e art. 19, da Lei Geral de Telecomunicações (LGT) restringem a atuação da Anatel aos serviços de telecomunicações, estando fora de competência a regulação das empresas que prestam serviços sobre as redes (incluindo plataformas digitais) – os chamados serviços de valor adicionado (SVA) – , nos termos da Norma 4/1995 e Portaria 148 do MCom. 

A própria Agência já reconheceu, em entrevista apresentada no livro “Moderação de Conteúdo Online”, que “a Anatel não tem competência para atuar na questão de conteúdo, nem mesmo procedimental” e que o tema somente “tangencia os próprios prestadores de telecomunicação”, mas com ele não se confunde[2].

Enquanto isso, integrantes do Conselho Diretor têm afirmado que a Anatel seria “o único órgão do executivo federal que já está combatendo as fake news porque as decisões do Tribunal Superior Eleitoral durante as últimas eleições – quando houve bloqueios a sites e aplicativos de mensageria, por exemplo” e que “também está desenvolvendo soluções de inteligência artificial para identificar nas plataformas de comércio eletrônico a venda de equipamentos piratas, como as TV boxes”. Ambas as atuações nada dizem respeito à expertise para atuação em conteúdo disseminado na internet e muito menos a efetivação de direitos humanos no ambiente online.

Ao revés, a Anatel não tem atuação próxima à pauta de conteúdo e não é afeita a matérias de direitos humanos que estão no centro desse debate, como a proteção do Estado Democrático de Direito e a proteção de crianças e adolescentes de violência nas redes. Para além disso, nem mesmo efetiva com a devida qualidade a atuação nas matérias de sua atual competência.

2. Assumir novas competências levará a Anatel a negligenciar ainda mais seus deveres atuais, prejudicando o necessário avanço da conectividade significativa no Brasil e podendo levar a favorecimento dos interesses das plataformas

O cenário de inclusão digital no Brasil está longe de estar resolvido, como pudemos vivenciar de modo mais explícito na pandemia. Sabemos que a infraestrutura é o primeiro passo para conectar significativamente mais de 200 milhões de cidadãos. E reafirmamos que, ainda este, não é um problema superado no país. 

Precisamos de políticas públicas coordenadas e perenes, que envolvam diferentes órgãos do estado e que se comprometam, além do fornecimento de infraestrutura robusta e estável, com iniciativas de letramento digital e apropriação tecnológica. Neste contexto, consideramos que, em vez de ampliar seu escopo de atuação para as plataformas digitais, a Anatel possui um papel fundamental para se fortalecer no âmbito das suas competências no setor de telecomunicações e coordenar essa atividade, possuindo capacidade técnica, domínio da pauta e boa conexão com interlocutores importantes no governo para que solidifique uma política de Estado. Em especial, esse fortalecimento deve ocorrer de modo a superar atuações insuficiências na atuação da autoridade.

Além disso, considerando o viés histórico da agência para privilegiar os interesses das empresas que deveria regular em detrimento do interesse público e da defesa dos usuários dos serviços de telecomunicações, há grave risco que isso se reproduza no nível das aplicações de internet caso a Anatel se torne a autoridade supervisora das plataformas. Tal cenário poderia gerar o resultado oposto ao que se pretende alcançar com a regulação: em vez de limitar o poder das plataformas, teríamos uma entidade reguladora que favorece seus interesses econômicos.

3. A Anatel possui desempenho insatisfatório até mesmo para o seu setor

Para além de uma proximidade com seu setor regulado, a agência ainda tem tido atuação insuficiente na matéria de sua competência regulamentar. Considerando então o enorme poder econômico das empresas que prestam serviço na Internet, com poder de mercado inédito e altamente desafiador, e os impactos que geram nos mais diversos espectros do interesse público, especialmente no que diz respeito a direitos fundamentais, políticos e culturais, será temerário atribuir a Anatel a competência desta regulação, considerando diversas insuficiências no exercício de sua capacidade regulatória e fiscalizatória.

3.1 Auditoria do TCU aponta falhas, ineficiência e falta de transparência na atuação da Anatel;

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem apontado falhas na atuação da Anatel. O plenário do TCU aprovou, no último dia 19 de abril[3], uma série de recomendações para a agência, após elaborar uma auditoria operacional[4] sobre como os compromissos de abrangência e investimentos (licitações de radiofrequência, leilão do 5G, TACs, etc) contribuem para a qualidade dos serviços, inclusão digital e universalização da banda larga. 

Segundo o TCU, “[a] Anatel não possui um controle efetivo dos compromissos e nem tem uma regularidade de fiscalização que permita um controle e acompanhamento tempestivo, o que pode gerar baixa aderência à realização dos compromissos [de universalização] (…). Destarte, a fiscalização tem se mostrado ineficaz no controle tempestivo dos compromissos”

O TCU também demonstrou a insuficiência da atuação da agência nas suas próprias competências ao recomendar que a Anatel aperfeiçoe sua rotina de fiscalização dos compromissos de abrangência e investimentos, de modo: 

  • que haja transparência sobre o fluxo do processo, 
  • que a fiscalização dos prazos seja cumprida e 
  • que haja uma sistematização dos dados das fiscalizações dos compromissos.

3.2. O cumprimento das metas de universalização da telefonia fixa pela Anatel foi insatisfatório;

O Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) prestado em regime público é um dos instrumentos que o Estado utiliza para que a exploração privada garanta amplo acesso da população aos serviços de telecomunicações e a eficiente utilização do dinheiro público, visto que as concessionárias desfrutaram por muito tempo de incentivos da União e do direito à cobrança das assinaturas. 

Desde 2008, o PGMU passou por uma série de alterações nas suas metas que, sem um acompanhamento adequado da agência, foram sucessivamente sendo alteradas sem que seu cumprimento fosse garantido, inclusive após a adaptação da modalidade de outorga de concessão para autorização. Segundo estudo apresentado pela consultoria A.C. Lacerda[5], a metodologia de cálculo das metas realizada pela Anatel foi conservadora, apresentando erros nas ṕrojeções de demanda e receita, subestimando o potencial de evolução do market-share e da taxa intertemporal de desconto. 

3.3 .O leilão e as obrigações do 5G foram desastrosos: tiveram inúmeras distorções, erros de precificação, compromissos de conectividade insuficientes e privilégios para as grandes operadoras

No final de 2021, a Anatel realizou o maior leilão de frequências da história do país. A venda das quatro bandas (700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz) renderam somente R$ 46,7 bilhões aos cofres públicos – um valor extremamente abaixo do seu preço de mercado. 

No entanto, conforme já foi apontado[6] pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), a Anatel teve atuação insuficiente, já que o edital apresentou uma série de distorções, colocando inúmeras barreiras à inovação no setor, tais como: 

  • erro na precificação das estações rádio base; 
  • compromissos de atendimento insuficientes;
  • sobreposição de infraestrutura ao desconsiderar a infraestrutura de 4G já instalada em muitas localidades; 
  • licitação de toda a faixa de 26GHz, que, devido ao seu grande potencial para a inovação, foi realizada de modo a beneficiar apenas as grandes operadoras; 
  • estabelecimento de compromissos de conectividade abaixo do necessário. 

A gravidade dessas ocorrências levou a Coalizão Direitos na Rede a entrar com uma representação no Ministério Público Federal para que fossem apuradas as responsabilidades por improbidade administrativa da Anatel e violações ao Marco Civil da Internet e adotadas medidas cautelares.

Recentemente, a Anatel ainda tem insistido no uso dos recursos do Fundo Universal dos Serviços de Telecomunicações (FUST) para para expansão da cobertura de telefonia móvel, com tecnologia 4G ou superior, nas rodovias brasileiras sem atendimento. Mas vale lembrar que este último objetivo já é uma das obrigações do leilão do 5G, demonstrando a falta de capacidade da Anatel em fiscalizar os compromissos e obrigações já estabelecidos.

3.4. A Anatel falhou em manter o controle do inventário do patrimônio público de bens reversíveis, gerando um prejuízo que pode chegar a R$ 100 bilhões ao tesouro público[7]

A Anatel subestimou o valor econômico dos bens que devem retornar ao Poder Público após a conversão das concessões de telefonia fixa para a modalidade de autorização. Esses bens incluem  centenas de imóveis, redes de dutos, redes de telecomunicações, redes de acesso, redes de transporte, backhaul, antenas e equipamentos instalados em todo o território nacional. 

De acordo com o critério patrimonial de avaliação determinado pelo TCU em 2019 e pela Justiça Federal, o valor dos bens reversíveis está estimado em R$ 121 bilhões. No entanto, a Anatel considera apenas que estaria na casa de R$ 17 bilhões, um valor que representa um prejuízo bilionário ao tesouro público. Tal responsabilidade está, inclusive, sendo objeto de ações civis públicas[8].

Mesmo considerando que alguns dos valores desses bens foram depreciados, as empresas de telefonia ganharam bilhões com o processo de vendas ilegais sem o controle da Anatel, desrespeitando o devido processo. 

Deve-se considerar também que, para além do prejuízo aos cofres públicos, a agência demonstra insuficiência no controle de matérias de sua própria regulação ao não ter apresentado o inventário do patrimônio público de infraestrutura de telecomunicações, que foram cedidos às operadoras na privatização do sistema Telebrás em 1998. 

4. Ainda, a atuação da sociedade civil na Agência é extremamente dificultada e reduzida

O abandono histórico do Conselho Consultivo da Anatel, órgão máximo de participação da sociedade civil para a definição das políticas públicas de telecomunicações, é prova irretorquível da falta de inclinação da Agência para atuar na lógica de construção de consensos entre os múltiplos atores atingidos pela regulação, essenciais para o desenvolvimento de políticas na internet, nos termos do Marco Civil da Internet (MCI). É necessário retomar o papel histórico de importância do Conselho Consultivo para fortalecer a pauta de telecomunicações e garantir a participação social.

5. Portanto, precisamos de uma nova entidade autônoma de supervisão, apoiada por um conselho participativo multissetorial[8]

Considerando os motivos acima apresentados, endossamos que uma agência reguladora independente e com maior capacidade de fiscalização que a Anatel é essencial para que os termos da lei sejam garantidos. Para isso, é preciso que se construa um espaço multissetorial capaz de absorver a complexidade de demandas dos diferentes setores envolvidos na pauta e que preserve o caráter de criação coletiva da internet. 

A Coalizão Direitos na Rede entende que um ponto central de êxito de qualquer regulação dedicada às plataformas digitais está na criação de um órgão específico, dotado de autonomia funcional, financeira e administrativa, associado a um conselho multissetorial com capacidades deliberativas. Tal arranjo garantirá a tecnicidade e a participação pública necessárias ao detalhamento de regras, fiscalização do seu cumprimento e aplicação de sanções em caso de violações. 

Entendemos que a criação de um órgão regulador é fundamental, uma vez que atualmente não existe nenhum órgão na administração pública direta ou indireta, com prerrogativas, acúmulo, capacidade ou estrutura para assumir integralmente essas atribuições. A Anatel possui um relevante papel na regulação de telecomunicações e no avanço da conectividade significativa, mas não possui expertise e estrutura suficientes para a regulação de plataformas. 

[1] BRASIL. Presidente da Anatel se manifesta sobre PL das Fake News. Anatel, 27 abr. 2023. Disponível em:https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/presidente-da-anatel-se-manifesta-sobre-pl-das-fake-news
[2]  HARTMAN, Ivar; CURZI, Yasmin; ZINGALES, Nicolo; ALMEIDA, Clara. Moderação de conteúdo online: contexto, cenário brasoleiro e suas perspectivas regulatórias. Rio de Janeiro: Editora Alameda, 2021.
[3] URUPÁ, Marcos. TCU: atuação de Anatel e MCom cria lacuna sem política pública de longo prazo. Teletime, 19 abr. 2023. Disponível em: https://teletime.com.br/19/04/2023/tcu-atuacao-de-anatel-e-mcom-cria-lacuna-sem-politica-publica-de-longo-prazo/. Acesso em 27 abr. 2023.
[4] Relatório de Auditoria Operacional nº TC 010.200/2022-3 do Tribunal de Contas da União. Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues. Fiscalização 114/2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1BoPl6wFui2Zvqp3H2pk7fBafU3ZfA07-/view
[5]  BUCCO, Rafael. Intervozes critica momento de revisão do PERT. TeleSíntese, 04 mai. 2020. Disponível em: https://www.telesintese.com.br/intervozes-critica-edicao-do-pert-as-vesperas-do-termino-da-consulta-sobre-fim-das-concessoes
[6] COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Posicionamento da CDR sobre a implementação do 5G no Brasil. 06 out. 2021. Disponível em: https://direitosnarede.org.br/2021/10/06/5g-no-brasil/
[7]  GIMENES, Erick. A privatização da privatização: empresas de telefonia têm receita bilionária com venda irregular de antigos prédios e bens públicos. The Intercept Brasil, 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2022/02/21/telefonia-venda-irregular-bens-publicos/. Acesso em: 28 abr. 2023.
[8]  CDR. Inclusão digital: CDR quer evitar prejuízos bilionários aos cofres públicos. Disponível em: https://direitosnarede.org.br/2023/04/10/inclusao-digital-cdr-quer-evitar-prejuizos-bilionarios-aos-cofres-publicos/ . Acesso em: 27 abr. 2023.
[9]  CDR. A Democracia brasileira deve assumir um papel ativo na regulação das Plataformas Digitais. Disponível:https://direitosnarede.org.br/2023/04/12/a-democracia-brasileira-deve-assumir-um-papel-ativo-na-regulacao-das-plataformas-digitais/  . Acesso em: 27 abr. 2023.