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Excelentíssimas/os Deputadas e Deputados Federais,
O Brasil não pode esperar mais para estabelecer regras democráticas para o desenvolvimento e funcionamento da inteligência artificial em nosso país. A urgência da regulação é evidente. Casos de uso irresponsável de tecnologias automatizadas já produziram danos graves no país. Em diferentes estados brasileiros, pessoas negras foram detidas com base em sistemas de reconhecimento facial que apresentaram taxas de erro superiores a 90 por cento nas falsas correspondências, conforme documentado em levantamentos de defensorias públicas estaduais, do projeto Prova sob Suspeita do IDDD e de organizações de direitos humanos como a Rede Justiça Criminal. Esse cenário afeta de forma desproporcional cidadãos e cidadãs em situação de vulnerabilidade e demonstra que a ausência de critérios técnicos mínimos cria riscos imediatos à população.
O avanço de fraudes digitais reforça a gravidade da situação. Relatórios de segurança cibernética indicam que golpes envolvendo engenharia social assistida por IA, clonagem de voz e criação de documentos falsos cresceram mais de 300 por cento entre 2022 e 2024 no Brasil. A facilidade de utilização dessas ferramentas já vitimou idosos, pessoas com deficiência, cidadãos e cidadãs de baixa renda, que tiveram prejuízos financeiros e, em alguns casos, perderam acesso a benefícios essenciais após fornecer informações induzidas por sistemas automatizados que simulavam familiares ou agentes públicos.
No âmbito do sistema de justiça criminal, a adoção de ferramentas de inteligência artificial para análise de risco, predição de reincidência e apoio a decisões judiciais demanda especial atenção. O uso dessas tecnologias sem adequada regulamentação pode perpetuar e amplificar vieses discriminatórios históricos, comprometendo o direito constitucional à ampla defesa e ao devido processo legal. É fundamental que qualquer marco regulatório estabeleça regras específicas para sistemas de IA utilizados em contextos de privação de liberdade, investigação criminal e execução penal.
Em períodos eleitorais, a ausência de mecanismos de regulação agrava o ambiente informacional. A capacidade de gerar imagens, áudios e vídeos manipulados em larga escala coloca em risco a integridade do debate público. O país já registrou circulação de conteúdos potencialmente falsificados que simulavam discursos, falas e ações de figuras políticas durante o calendário eleitoral recente, o que exige respostas normativas urgentes para proteger a sociedade e a democracia.
Tal regulação deve ter como fundamento os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a não discriminação abusiva. Esses princípios devem orientar a criação de procedimentos de avaliação de risco, mitigação de danos, auditoria algorítmica independente com participação da sociedade civil, e reparação para pessoas afetadas por decisões automatizadas, incluindo mecanismos acessíveis de contestação e revisão humana de decisões, bem como regras de transparência que permitam identificar conteúdos sintéticos e atribuir responsabilidade aos agentes envolvidos.
A proteção dos direitos autorais também deve ser assegurada. A mineração de dados para treinamento de modelos depende de obras protegidas e gera valor econômico significativo. É fundamental que o marco reconheça e estabeleça mecanismos que garantam remuneração justa a titulares, transparência sobre o uso das obras e possibilidade de controle pelos criadores, evitando apropriação indevida de conteúdo nacional.
Queremos um marco de IA para promover e regular o desenvolvimento tecnológico e a inovação, apoiado em princípios e padrões éticos universais, no respeito e proteção aos direitos humanos e fundamentais, aos direitos autorais, à saúde, à educação, à criança e ao adolescente, ao meio ambiente, à cidadania, a justiça social e resguardando a democracia.
Em abril de 2025, foi criada, na Câmara dos Deputados, a Comissão Especial sobre a inteligência artificial no Brasil, com o propósito de debater o Projeto de Lei 2338/23, que dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da IA com base na centralidade da pessoa humana1.
Integrada por 33 deputados e deputadas titulares e igual número de suplentes, a primeira reunião e instalação da Comissão ocorreu em 20 de maio de 2025, quando foi estipulado a apresentação de seu Plano de Trabalho com a definição de calendário e procedimentos2.
Assim, considerando as datas estipuladas para a terceira e quarta etapas do Plano de Trabalho aprovado na Comissão Especial, as entidades aqui signatárias pedem com urgência a disponibilização do texto do relatório pelo relator, deputado federal Aguinaldo Ribeiro, e tempo hábil para análise, a fim de que a sociedade civil possa se debruçar sobre as eventuais alterações que forem feitas à versão do texto aprovado no Senado Federal em 2024.
É meritório que a Câmara dos Deputados garanta um debate qualificado sobre um tema de tamanha emergência e de afetação ampla da sociedade brasileira, na busca de inclusão de vozes no fomento de um verdadeiro debate público, prosseguindo os trabalhos do Senado Federal. Apesar disso, os espaços de escuta para a sociedade civil ao longo deste processo foram extremamente reduzidos. Um debate representativo requer não apenas um ou poucos integrantes destes segmentos, mas uma composição numericamente equânime, ou ao menos equilibrada, entre todos os segmentos convidados.
A primeira audiência pública, por exemplo, que ocorreu no dia 10 de junho de 2025, foi realizada com a presença de somente uma mulher, um membro de organização da sociedade civil e nenhuma pessoa negra, indígena ou com outro marcador social diverso, justamente os grupos mais afetados pelos riscos já documentados de sistemas de IA, conforme demonstram os casos de falsas identificações por reconhecimento facial que atingem predominantemente a população negra. Um debate pouco representativo não permitirá a redação de uma regulação capaz de atender aos diferentes interesses da sociedade brasileira. A subparticipação da sociedade civil, em especial, tem o condão de comprometer as discussões por não trazer de forma adequada exatamente a perspectiva daqueles e daquelas que serão mais afetados e afetadas pela inteligência artificial, que são as pessoas usuárias.
Sabemos que os deputados e deputadas que compõem a Comissão possuem um profundo comprometimento e valorização da sociedade brasileira, sendo justamente por isso que pedimos pela sua atenção a esses pontos. Deste modo, nos colocamos à disposição e reiteramos o nosso interesse em colaborar para a breve conclusão dos trabalhos da ilustre Comissão Especial, de modo a chegarmos a um marco regulatório da IA para o Brasil que proteja direitos fundamentais e estimule a inovação responsável do país.
1 Câmara dos Deputados. Hugo Motta cria comissões para discutir PNE, isenção do Imposto de Renda e inteligência artificial. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1147592-hugo-motta-cria-comissoes-para-discutir-pne-isencao-do-imposto-de-renda-e-inteligencia-artificial/. Acessado em 19 mai. 2025; MOTTA, Hugo. Este anúncio não é fruto de IA! A deputada @luisa_canziani (PSD-PR) será a presidente da Comissão Especial que vai discutir o projeto de Inteligência Artificial na Câmara. O relator será o meu conterrâneo deputado @depaguinaldo11 (PP-PB). Brasília, 7 de abril de 2025. Disponível em: https://x.com/HugoMottaPB/status/1909390443755844034. Acesso em 20 de mai. 2025.
2 Câmara dos Deputados. Câmara instala comissão para debater proposta sobre uso de inteligência artificial no Brasil. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1159111-camara-instala-comissao-para-debater-proposta. Acesso em 19 mai. 2025.
Entidades signatárias:
- ABRA – Associação Brasileira de Autores Roteiristas
- AMC-SP – Associação dos Montadores de Cinema de São Paulo
- AnaMid – Associação Nacional do Mercado e Indústria Digital
- ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
- Associação Brasileira de Compositores para Audiovisual – Musimagem Brasil
- Associação de Jornalismo Digital – Ajor
- Associação Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero
- Associação Mulheres na Comunicação (AMC)
- Associação Mundial de Rádios Comunitárias – AMARC Brasil
- CDDH Dom Tomás Balduíno
- Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
- Coalizão Direitos na Rede
- Conectas Direitos Humanos
- Coletivo Digital – Associação pela Democratização do Acesso à Sociedade da Informação
- CTI – Renato Archer
- data_labe
- Data Privacy Brasil
- Desvelar
- DiraCom – Direito à Comunicação e Democracia
- Dublar – Movimento Dublagem Viva
- Geftas – Serviço Social e Comunicação
- Grupo de pesquisa Mídia, conhecimento e meio ambiente: olhares da Amazônia
- Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas -Ibase
- Instituto de Ciências Educação Técnologia e Cultura nas Comunidades – ICETEC BRASIL
- Instituto de Defesa de Consumidores (IDEC)
- Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD
- Instituto Soma Brasil
- Instituto Sumaúma
- Instituto Telecom
- Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
- IP.rec – Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife
- Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília – Lapcom-UnB
- Laboratório de Políticas Públicas e Internet – LAPIN
- Laboratório de Trabalho, Plataformização e Saúde (LATRAPS-UEM)
- Mangue Jornalismo
- Movimento Unido dos Camelôs (MUCA)
- Rede de Justiça Criminal (RJC)
- Repórteres Sem Fronteiras – RSF
- Satedsp
- Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJoRS)
- Sleeping Giants Brasil
- Transparência Brasil
- União Brasileira de Mulheres Núcleo São Gonçalo dos Campos
- União Democrática dos Artistas Digitais (UNIDAD)
- WITNESS
