Posicionamento sobre o PL 2338/2020 e sistemas de identificação biométrica (reconhecimento facial)

A Coalizão Direitos na Rede, a Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira e as demais organizações signatárias desta iniciativa, manifestam-se publicamente para nos posicionar contra a proposta do relator do PL 2338/2023, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), de afrouxar as regras de uso de tecnologias de reconhecimento facial em espaços públicos. No último dia 26, o relator declarou que o texto aprovado pelos senadores é “restritivo demais” e que não seria possível restringir o uso de reconhecimento facial pois isso afetaria setores essenciais como segurança pública.

A atual redação do PL classifica as tecnologias de reconhecimento facial como de “Risco Excessivo”, mas estabelece um amplo rol de exceções que abarcam todos os usos correntes destas tecnologias no contexto de segurança pública e persecução penal no Brasil (PL 2338/2023 Art. 13, inciso VII). Em verdade, o PL aprovado no senado federal cria um vácuo regulatório, ao estabelecer uma ampla lista de exceções que não são alcançadas por nenhuma estrutura de governança proposta pelo texto.

Neste sentido, a Coalizão Direitos na Rede, a Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira e as demais organizações signatárias desta iniciativa pedem que o relator reconsidere sua posição e crie mecanismos de regulação do uso de tecnologias de reconhecimento facial em espaços públicos. Tal pedido baseia-se em evidências técnicas e em fundamentos de inconstitucionalidade e violação de direitos fundamentais, conforme exposto a seguir.

Projetos de lei e atos normativos que pretendem empregar tecnologias biométricas para fins de persecução penal e vigilância da população brasileira não resistem a uma análise de constitucionalidade, proporcionalidade e justiça, como exige o devido processo legislativo.

Essa análise deve abranger também as ações do Poder Executivo, nos termos dos artigos 20 e 21 da Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que impõem o dever de considerar as consequências práticas e sociais de decisões administrativas e normativas, não se baseando apenas em valores jurídicos abstratos. Assim, é imperativo que qualquer política pública baseada em reconhecimento facial seja precedida de avaliação de impacto regulatório, estudos independentes e consulta pública, sob pena de incorrer em arbitrariedade e desvio de finalidade.

Lançar luz sobre o reconhecimento facial é urgente para que o país decida com base em evidências e não em promessas tecnológicas espúrias. Trata-se de uma tecnologia de alto impacto, que toca diretamente princípios da administração pública (legalidade, publicidade, eficiência), a proteção de dados pessoais (Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) e direitos fundamentais como privacidade, igualdade e liberdade de reunião. Sem salvaguardas robustas, avaliações independentes e controle social, o reconhecimento facial produz discriminação, vigilância massiva e gastos públicos ineficientes — além de abrir espaço para ingerência privada e estrangeira sobre os dados pessoais de cidadãos brasileiros e sobre infraestruturas críticas, comprometendo nossa soberania e fragilizando nossa democracia. Listamos, aqui, alguns eixos que precisam da atenção dos legisladores:

  1. Preceitos da Administração Pública, orçamento e ingerência indevida do setor privado 

Desde 2014, o uso de reconhecimento facial na segurança pública tem ocorrido sem qualquer marco regulatório, revelando sérios riscos à integridade orçamentária e à gestão pública. Em Goiás, por exemplo, diversas empresas recém abertas e notadamente sem expertise firmaram contratos milionários com o Estado para implementação e gerenciamento da tecnologia (Nunes et. al, 2023; ANPD, 2024), costumeiramente adquiridas sob dispensa de licitação, sem transparência sobre a execução orçamentária, sem contrapartidas ou relatórios de impacto e, muitas vezes, sem que a administração pública sequer conheça sua efetividade real. Para piorar, além do dispêndio de dinheiro público, os dados biométricos sensíveis da população ficam sob a salvaguarda de empresas com interesses privados, o que contraria a própria LGPD. Esse cenário viola os princípios da legalidade, eficiência e publicidade, art. 37 da Constituição Federal, e cria dependência tecnológica de empresas privadas, muitas vezes estrangeiras, sobre dados sensíveis da população, afrontando a soberania nacional e a LGPD. 

O uso de reconhecimento facial tem sido um gasto para a Administração Pública. O projeto Smart Sampa custou aproximadamente 10 milhões por mês para o consórcio contratado. Na Bahia, estão sendo gastos já 600 milhões de reais desde que o sistema de reconhecimento facial começou a ser implantado em 2019. O projeto O Panóptico estima que esses 600 milhões de reais poderiam ser gastos em 1.500 ambulâncias, 300 unidades de pronto atendimento (UPA) e custear um hospital estadual de referência por 32 anos. Mesmo com esses investimentos maciços, o relatório apontou que a tecnologia mostrou baixa taxa de acertos e alto potencial de erros, resultando em detenções de inocentes e uso ineficiente do orçamento público.

  1.  Violação do Direito à Liberdade e à Presunção de Inocência

O emprego dessas tecnologias viola o direito fundamental à liberdade (Art. 5º, caput e XV da CF/88) e o princípio da presunção de inocência (Art. 5º, LVII da CF/88). Ao associar a vigilância generalizada de toda a população a bancos de dados criminais, o Estado impõe uma “pena de suspeição” coletiva, tratando cada cidadão como potencial transgressor sem justa causa e violando, incompatível com o devido processo legal e com a lógica do Estado Democrático de Direito.

  1.  Violação do Direito à Igualdade e Caráter Discriminatório

A sociedade civil organizada vem denunciando há anos os problemas do reconhecimento facial e a forma fundamentalmente enviesada e racista pela qual opera, submetendo a população ao risco de ter seu direito de ir e vir cerceado. Não à toa, em abril de 2025, um idoso de 80 anos foi confundido com um estuprador procurado e permaneceu 10 horas detido em uma delegacia. A prisão ocorreu pelo falso alerta das câmeras do Smart Sampa alocadas em uma Unidade Básica de Saúde. Em Sergipe, uma mulher foi confundida duas vezes durante o mesmo evento em 2024, uma delas culminando em uma abordagem truculenta que a fez sentir “coagida e desesperada”. Diante do pavor, a mulher chegou a urinar. No Rio de Janeiro, durante uma conferência de igualdade racial, uma servidora pública foi abordada e conduzida para a delegacia por um erro da ferramenta. Os erros são sistemáticos e têm um alvo preferencial: pessoas negras. Não é possível que a democracia conviva com uma política de segurança pública galgada na produção massiva de experiências desiguais no acesso a direitos, bens e serviços. 

Os sistemas biométricos afrontam o princípio da igualdade perante a lei (Art. 5º, caput da CF/88), pois estudos e evidências concretas demonstram que essas ferramentas apresentam taxas de erro desproporcionalmente maiores contra grupos demográficos específicos (como pessoas negras e mulheres). A imprecisão tecnológica aprofunda vieses estruturais, resultando em falsos positivos seletivos e policiamento discriminatório, ferindo o objetivo fundamental da República de promover o bem de todos, sem preconceitos (Art. 3º, IV da CF/88).

  1. Responsabilidade objetiva e riscos de condenação para o Estado 

Ressalta-se que essas falhas e prisões injustas devido ao uso de tecnologias de reconhecimento facial também podem levar a indenizações do Estado. Essa tecnologia como parte de uma política pública de segurança ao levar a situações de constrangimento e violação de direitos, acaba sendo abarcada pela previsão constitucional de responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público em caso de danos causados por  seus agentes ( Art, 37, §6, CF/88). 

  1. Violação da Proteção de Dados Pessoais

A coleta e o tratamento em larga escala de dados biométricos, definidos como dados pessoais sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados (Art. 5º, II), violam o direito fundamental à proteção de dados (Art. 5º, LXXIX da CF/88), reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Tais aplicações desrespeitam os princípios da finalidade e da necessidade (LGPD, Art. 6º, I e III), pois a vigilância massiva de toda a população excede o mínimo indispensável para a persecução penal. A ausência de lei específica para esse tratamento no âmbito da segurança pública, exigida pela própria LGPD, torna a operação precária e ilegítima. 

Importante colocar que a exceção da Lei Geral de Proteção de Dados para uso de dados pessoais para fins de segurança pública/investigações criminais não significa uma não aplicabilidade da Lei. Importante reafirmar que os princípios, entre eles, finalidade, necessidade e prestação de contas, e os direitos elencados na LGPD ainda se aplicam para essas atividades de segurança pública e que a proteção de dados é um direito fundamental elencado pela Constituição Federal e referendada por decisões do Supremo Tribunal Federal. Esta perspectiva já foi endossada pela Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), há pelo menos dois anos, por meio da Nota Técnica 175/2023.

Nota-se que mesmo não se aplicando totalmente, a própria LGPD dispõe obrigações de comunicação para Autoridade quando houver tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública e investigações criminais com participação de entes privados. Da mesma forma, a LGPD veda que haja totalidade de tratamento para essas finalidades específicas. 

  1.  Violação da Livre Manifestação e Associação

A vigilância biométrica de espaços públicos impacta os direitos de livre manifestação do pensamento (Art. 5º, IV da CF/88) e de associação (Art. 5º, XVI da CF/88). O monitoramento constante gera um efeito inibidor na sociedade, dissuadindo a participação em protestos e reuniões públicas por temor de identificação e perseguição, cerceando a participação popular e impondo restrições ao espaço cívico, essencial ao regime democrático. Em um país em que grandes manifestações de rua tornaram-se uma prática cada vez comum de exercício do direito de expressão, essas tecnologias podem ser uma barreira indesejável para a realização do Estado Democrático de Direito. 

  1.  Violação dos Deveres de Ponderação e Consequencialismo (LINDB)

Os projetos de biometria desrespeitam os deveres de ponderação e transparência impostos pelos Artigos 20 e 21 da LINDB. Ao exigir que o Poder Público considere as consequências práticas antes de decidir (Art. 20), a LINDB impede a adoção de tecnologias cujos impactos negativos (como o aprofundamento da discriminação racial, os falsos positivos e o cerceamento da manifestação) são evidentes e graves. A implementação falha em demonstrar a conformidade com o interesse geral e a eficácia, desatendendo o princípio do consequencialismo jurídico exigido pela Lei.

Conclusão

Diante do exposto, e em estrito cumprimento dos pilares estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, pela Lei Geral de Proteção de Dados e pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, as entidades signatárias reiteram o veemente pedido pela inclusão no PL 2338/2023 de mecanismos de controle e limitações de uso de tecnologias biométricas para fins de persecução penal e vigilância em massa no Brasil, por sua manifesta inconstitucionalidade e incompatibilidade com um Estado Democrático de Direito.

Campanha Tire Meu Rosto Da Sua Mira
Coalizão Direitos na Rede