A neutralidade da rede é mais do que um princípio. Ela é uma das bases que permitiram a Internet se desenvolver e capilarizar pelo mundo e que tornou possível a criação, sobrevivência e expansão de um ecossistema digital complexo e diverso. O conceito, formulado por Tim Wu, parte da noção de que uma rede pública deve tratar de forma igualitária todos os conteúdos, sites e serviços. Transformada mais tarde em princípio, essa concepção assegura que a Internet possa acolher qualquer tipo de informação ou aplicação, preservando seu valor justamente por ser uma plataforma aberta e preparada para múltiplos usos, presentes e futuros.1
O Brasil escolheu incorporar o princípio da neutralidade da rede como pedra fundamental do ordenamento jurídico aplicável ao ecossistema digital. Essa escolha foi fruto de um processo de cinco anos de debates, com ampla participação de todos os setores da sociedade, que resultou na Lei 12.965/20142, o Marco Civil da Internet, uma das maiores conquistas regulatórias da sociedade civil no campo de políticas digitais. Ele foi um esforço coletivo para substituir iniciativas legislativas que apenas estabeleciam e tipificavam crimes, sem estabelecer direitos civis. O Marco Civil da Internet também foi uma resposta contundente para o fortalecimento da soberania brasileira em um momento de graves revelações sobre abusos de mecanismos digitais de espionagem e vigilância sobre o Brasil e seus agentes públicos.
A Coalizão Direitos na Rede, a partir da articulação das diversas organizações que a compõem, teve voz e protagonismo para a construção de uma regulação que colocasse a neutralidade da rede como princípio indiscutivelmente central ao modelo brasileiro de governança da Internet, estabelecido legalmente nos dispositivos:
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;
Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
Art. 24. Constituem diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no desenvolvimento da internet no Brasil:
VII – otimização da infraestrutura das redes e estímulo à implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no País, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a difusão das aplicações de internet, sem prejuízo à abertura, à neutralidade e à natureza participativa;
Entretanto, nestes últimos 10 anos, observamos diversas ameaças à neutralidade da rede em atendimento a interesses privados, comerciais e de poucas empresas estrangeiras. A Coalizão Direitos na Rede tem sido vocal em todos os momentos em que oportunismos e abusos de poder buscam minar esse princípio conquistado democraticamente e legalmente estabelecido.
Em 2017, nos manifestamos contra à decisão da Federal Communications Commission (FCC, equivalente à Anatel nos EUA) de afastar a neutralidade da rede com o objetivo de evitar influências negativas e para garantir a manutenção do modelo brasileiro3, baseado em princípio de governança instituído no país por meio de resolução editada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil em 2019.
Em 2023, enviamos um pedido administrativo ao governo brasileiro para alteração do modelo de acesso à internet móvel baseada em franquia associada à prática do zero rating, que revela inequívoco descumprimento do que dispõem o art. 9° do MCI e seu decreto regulamentador 8.771/2023 sobre neutralidade da rede4.
Desde 2024, entretanto, observamos a escalada de uma nova ameaça a esse princípio basilar, materializada em uma proposta apresentada pelas três mais lucrativas empresas de telecomunicações do Brasil: a criação, pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), de uma taxa a ser paga por usuários que fazem uso intenso das redes de telecomunicações em razão do seu tráfego. Uma lógica que rompe com o modelo vigente, no qual os consumidores já remuneram a capacidade de banda contratada, e não o volume de tráfego dentro dela, como nas franquias de rede móvel.
Essa cobrança adicional implicaria no tratamento diferenciado dos pacotes de dados decorrentes de tais serviços e, em última instância, poderia também forçar esse grupo de usuários a firmar acordos comerciais bilaterais para acessos privilegiados à infraestrutura de telecomunicações, afrontando direta e inequivocamente o princípio da neutralidade da rede.
As operadoras autoras dessa proposta argumentam haver necessidade de compartilhamento dos custos dos investimentos para garantir infraestrutura que propicie condições de qualidade na prestação de serviços. Contudo, essas mesmas empresas já fazem cobranças pelo acesso à internet na medida da demanda do contratante.
Na hipótese de aplicação da referida taxa, os custos dela decorrentes serão certamente repassados para o consumidor final, alargando ainda mais as barreiras econômicas para o acesso à internet no Brasil. Segundo pesquisa do Cetic.br5, dentre as pessoas que nunca usaram a internet no país, 33% afirmam terem sido afastadas desse direito em razão do alto custo do serviço. A porcentagem aumenta na região Norte, onde 62% dos não-usuários apontam a motivação econômica para a exclusão digital.
A universalização do acesso à internet ainda é um problema crônico no Brasil, que afasta pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade do acesso a direitos básicos hoje exercidos por meio da Internet. A infraestrutura de conectividade ainda é escassa e a CDR continuamente defende sua expansão e qualificação. Porém, não é uma cobrança adicional e que afronta um princípio legalmente estabelecido que solucionará o problema.
Em 2018, o Tribunal de Contas da União (TCU)6 apontou que uma deficiência das políticas públicas de inclusão digital no Brasil é a sobreposição de ações, além da descontinuidade de políticas públicas, da falta de ordenamento e planejamento e do desperdício de recursos públicos. Em relatório de junho de 2025, o TCU “concluiu que há falhas de governança nas políticas públicas e que as ações do Estado são insuficientes e ineficientes para combater a exclusão digital”7.
Instituir uma taxa por uso de rede para supostamente suprir recursos para investimentos – que poderão ser feitos de acordo com os interesses econômicos das operadoras de telecomunicações e não necessariamente onde mais são ausentes – não vai resolver o desafio histórico da universalização do acesso significativo no Brasil. Pelo contrário, institucionalizará uma prática violadora da neutralidade de rede, com consequências danosas para o acesso igualitário às redes no país. O que o Brasil precisa é de uma construção democrática liderada pelo Ministério das Comunicações para estabelecer políticas públicas efetivas e alinhadas às demandas dos usuários que ainda não possuem conectividade significativa. Basta vontade e prioridade política para fazê-la.
Coalizão Direitos na Rede
- https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=388863 ↩︎
- https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm ↩︎
- https://direitosnarede.org.br/2017/12/16/nota-publica-sobre-a-decisao-da-fcc-acerca-da-neutralidade-de-rede/ ↩︎
- https://direitosnarede.org.br/2023/01/05/cdr-pede-regulacao-contra-desigualdades-na-internet-movel/ ↩︎
- https://cetic.br/pt/tics/domicilios/2024/individuos/C15/ ↩︎
- https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/3250820174.PROC%2520/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/sinonimos%253Dfalse ↩︎
- https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-determina-criacao-do-plano-nacional-de-inclusao-digital ↩︎