A escalada da tensão na conjuntura internacional alcançou outro patamar com a antecipação, ontem (30 de julho), do cumprimento das ameaças dos Estados Unidos da América (EUA) contra o Brasil. O gravíssimo ataque perpetrado pela Casa Branca contra a economia brasileira, através do aumento efetivo de tarifas comerciais, e contra as instituições legitimamente constituídas do país, através da aplicação de sanções contra um Ministro do Supremo Tribunal Federal, precisa ser respondida com uma importante mobilização social e uma melhor e urgente articulação do governo federal com a sociedade civil e a comunidade acadêmica, para defender a soberania e a autodeterminação do país em construir nosso caminho para garantia dos direitos digitais e desenvolvimento tecnológico.
Está evidente que no cerne da ofensiva estadunidense estão os interesses imediatos das grandes empresas de plataformas digitais e de tecnologia. Desde o dia 9 de julho, quando o governo dos EUA ameaçou o Brasil com um aumento substancial de tarifas comerciais, a carta assinada pelo presidente estadunidense citava expressamente, sendo uma justificativa infundada, as multas e ordens judiciais direcionadas às empresas de plataformas digitais e de tecnologia. Defesa destes interesses foi reiterada quando, no dia 15 de julho, o Representante de Comércio dos Estados Unidos abriu investigações contra o Brasil com base na seção 301 da Lei de Comércio de 1974, por práticas de negócio consideradas por eles como “injustas”.
Frente a este cenário e aplicação do chamado “tarifaço”, o governo federal reagiu pronta e corretamente, mantendo sua tradição em buscar, de forma ativa e altiva, negociar resoluções pacíficas dentre os interesses expressos à mesa de negociação. Entretanto, a notícia de que o Vice-Presidente e Ministro de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, reuniu-se ontem (30 de julho) com a Meta, Google, Apple, Amazon e Visa, apesar de ser importante, é também preocupante, tendo em vista a falta de transparência e de participação social nesses encontros. A divulgação pública de uma “mesa de trabalho” sobre quatro pontos (ambiente regulatório, inovação tecnológica, oportunidade econômica e segurança jurídica) levanta preocupações para a Coalizão Direitos na Rede, especialmente no que tange aos possíveis rumos das negociações e suas consequências. Entendemos que, para fortalecer a defesa dos interesses do Brasil de forma plural e democrática, é de suma importância a presença da sociedade civil e da comunidade científica nessas negociações.
Considerando que a postura de Washington é impor as suas demandas unilateralmente, sem a abertura de canais oficiais para a negociação e que em situações de negociações políticas de acordos comerciais, empresas transnacionais buscam prejudicar o debate público de forma a proteger seus interesses particulares em relação às propostas de regulações sobre serviços digitais, modelo de negócios e desenvolvimento de tecnologias, é fundamental que o governo federal não ceda às pressões das grandes empresas. Por isso, em linha de contribuir com a defesa dos interesses do Brasil, possibilitando a participação da sociedade civil e, consequentemente, ampliando os canais de transparência sobre estas mesas de negociações, entendemos ser importante envolver o Conselho Consultivo para a Transformação Digital, do Comitê Interministerial para Transformação Digital (CIT-Digital) nessas tratativas, bem como promover reuniões e audiências públicas. Como forma de fortalecer ainda mais esse processo, consideramos que a participação social, neste espaço, precisa contar com capacidade de propor ações efetivas, não apenas consultivas, a serem avaliadas pelo Comitê Executivo da CIT-Digital, transformando de Conselho Consultivo para Conselho Multissetorial para a Transformação Digital, por conter setores da sociedade civil, comunidade científica e empresarial, em consonância com os valores afirmados pelo Marco Civil da Internet.
Preocupa a presença da Visa, Meta e Apple, na referida reunião, por possíveis pressões que façam com intuito de promover seus sistemas de pagamento, ou mesmo desincentivar investimentos sobre a infraestrutura pública digital de pagamentos instantâneos, o PIX. É notório que a Visa e Meta cooperaram, junto de outras empresas do setor, para implementar o WhatsApp Pay no Brasil, mas tiveram o acordo suspenso pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o lançamento interrompido pelo Banco Central. A Apple, por sua vez, está sendo investigada pelo Cade por precisamente não autorizar o Pix por aproximação em seus sistemas, mas permitir outros serviços de pagamentos.
Uma mesa de trabalho sem participação social e melhores canais de transparência, tratando sobre “segurança jurídica”, “ambiente regulatório”, “inovação tecnológica” e “oportunidade econômica” pode afetar diretamente a tramitação e mérito das propostas de regulação sobre serviços digitais – estabelecendo responsabilidades e obrigações de transparência – e mercados digitais – visando promover a concorrência nestes mercados – que o governo tem elaborado desde o início do ano. Ao tratar, nestas condições, com as empresas que monopolizam os mercados digitais no Brasil, temos receio que o governo possa ser pressionado a abdicar de suas proposições regulatórias e de instituição de mecanismos básicos de defesa dos direitos dos consumidores, como a proibição de usos abusivos de dados pessoais entre empresas de um mesmo grupo econômico. Além disso, a contraproposta de atração indiscriminada de centros de dados (data centers), promovida como estratégia de desenvolvimento, pode aprofundar essa captura, agravando impactos socioambientais, concentração de poder econômico e nossa dependência tecnológica.
Por isso, inclusive, defendemos, como resposta aos ataques da Casa Branca e às pressões das grandes empresas, que o governo apresente seus projetos de regulação para o debate público. A ofensiva estadunidense interfere na soberania do Brasil porque busca impedir-nos de decidir enquanto sociedade as formas de promover o nosso próprio desenvolvimento e emancipação tecnológica. Diante desse ataque, a forma de fortalecer a soberania é praticando-a, mobilizando o debate público em torno de propostas.
Nos últimos dez anos, as entidades da Coalizão Direitos na Rede, formada por 50 organizações da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, têm atuado em debates e ações promovendo uma governança da Internet democrática e o desenvolvimento de tecnologias centrada na garantia de direitos. Somos organizações com trajetória e experiência prática e conhecimento técnico sobre mercados digitais e sobre direitos fundamentais. Por isso reiteramos que é de suma importância que o governo federal melhore sua interlocução com sociedade civil e a comunidade científica e fortaleça os espaços de participação. A soberania se defende com povo na rua e à mesa de negociação.
31 de Julho de 2025
Coalizão Direitos na Rede