Nota sobre o PL 2630/20 | Rastreabilidade viola a Constituição ao criar mecanismo de vigilância em massa

Aprovado pelo Senado Federal em junho de 2020, o Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, foi amplamente discutido na Câmara dos Deputados, em dois ciclos de audiências públicas. Na iminência da publicação de um texto substitutivo pelo relator, deputado Orlando Silva, a Coalizão Direitos na Rede e as entidades que subscrevem esta nota vêm a público se posicionar fortemente contra a possível manutenção de propostas redutoras de direitos humanos fundamentais, como a privacidade, o sigilo das comunicações e a proteção de dados pessoais. Conhecida como rastreabilidade, a principal dessas propostas submete todas as mensagens em aplicativos como WhatsApp a um monitoramento por pelo menos 15 dias desde o envio. 

Conforme já afirmado amplamente, essa dinâmica de vigilância em massa e indiscriminada viola garantias asseguradas pela Constituição Federal, pelo Marco Civil da Internet e pela Lei Geral de Proteção de Dados.

Nos termos do artigo 10 aprovado pelos senadores, “os serviços de mensageria privada devem guardar os registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens”. A configuração como “encaminhamento em massa” depende de que todas as mensagens, de todas as pessoas, sejam guardadas e comparadas durante 15 dias, o que prejudica, na prática, a referida pretensão de resguardar o sigilo do conteúdo das comunicações. 

Em um cenário profundamente invasivo, claramente inseguro e timidamente regulado, dará ensejo a um mecanismo extremamente perigoso. Toda a população brasileira verá seus dados pessoais e suas comunicações submetidas a um risco real e muito alto de requerimentos abusivos, de  medidas de segurança falhas, de deliberado mau uso por empresas privadas, e até de vazamentos inadvertidos. Parlamentares, jornalistas, pesquisadores, ativistas, estudantes universitários, cidadãos denunciando crimes, mães trocando fotos de seus filhos, pacientes em consultas com profissionais de saúde, etc.: todo mundo será alvo permanente de vigilância. 

E se, por razões legítimas ou mesmo sem querer, eventualmente alguma dessas pessoas enviar ou receber um conteúdo que se torne viral, ficarão vinculadas a uma chamada cadeia de compartilhamento. A vigilância passa a ser um padrão, em substituição à investigação apenas de pessoas suspeitas de algum ilícito conhecido, e o consequente potencial de criminalização de cidadãos inocentes é enorme.

Em um processo judicial envolvendo esses conteúdos, caberá às pessoas envolvidas o dever de demonstrar, após o fato, que não têm relação com a indústria de disseminação de desinformação que o PL, com boa intenção, pretende atingir. Mas neste momento, em grave desrespeito à presunção de inocência, seu número de telefone e sua rede de interações online, por exemplo, já terão se tornado de conhecimento de outras pessoas, que não apenas as legítimas participantes das conversas.

Ainda, essa rastreabilidade impacta negativamente o exercício da liberdade de expressão: o constante monitoramento das mensagens será um balde de água fria em um ambiente no qual se esperaria uma proteção à privacidade e ao sigilo, inclusive por força da aplicação de criptografia forte. Um custo muito alto, para uma medida que, em nenhum lugar do mundo, teve qualquer eficácia minimamente comprovada. 

A medida tampouco seria efetiva no sentido de se identificar eventuais autores de conteúdos ilícitos, já que a própria dinâmica da Internet permite facilmente a quebra das eventuais cadeias de transmissão e o fato de muitos conteúdos transitarem entre plataformas (são criados, por exemplo, no YouTube e depois compartilhados no Whatsapp) impede que se chegue a seus reais produtores. A desinformação é um problema significativo para a nossa democracia. Mas seu enfrentamento não pode violar direitos humanos que se encontram na base da própria democracia que se pretende defender. 

Alternativas constitucionais e proporcionais

Lamentavelmente a rastreabilidade foi aprovada pelo Senado. Mas acreditamos ser possível, em verdade necessário, que a Câmara dos Deputados aprove uma alternativa ao texto. Entre diversas apresentadas para debate, a que melhor atende a essas preocupações propõe, a partir de ordem judicial, a guarda de metadados de contas específicas e suas interações, num processo semelhante à lógica da interceptação telefônica, mas, neste caso, sem associação ao conteúdo da comunicação. 

A proposta1 estabelece que, para fins de constituição de prova em investigação criminal e em instrução processual penal, a autoridade judicial pode determinar aos provedores de serviço de mensageria privada a preservação e disponibilização dos registros de interações de usuários determinados por um prazo de até 15 dias, considerados os requisitos estabelecidos no artigo 2º da Lei 9.296/1996, sendo vedados os pedidos genéricos ou fora do âmbito e dos limites técnicos do seu serviço.

O texto descarta a ideia de retenção de dados, considerando-se a preservação como preferível a alternativas não testadas quanto à sua eficácia. Enquanto a retenção pressupõe o armazenamento preventivo, massivo e indiscriminado de dados em um sistema para que, posteriormente, sejam identificados e utilizados, na preservação ocorre a ponderação de quais dados devem ser guardados. Como detalha o Data Privacy Brasil em análise aprofundada sobre o tema, somente os registros de interações dos usuários contra os quais haja indícios de autoria ou participação em infração penal seriam armazenados. Com isso, a proteção dos usuários seria contemplada, ao mesmo tempo que seria possibilitado o monitoramento futuro e a identificação do padrão das interações de suspeitos formalmente investigados em aplicativos de mensageria.

Pela proposta, diante de decisão judicial que indefira o pedido de disponibilização dos dados ou caso não seja apresentado pedido para acesso aos registros dentro do prazo fixado, o serviço de mensageria privada deverá eliminar os dados em até 10 dias. Seria uma medida proporcional, sem prejudicar as referidas garantias jurídicas. 

A investigação de responsáveis proporcional e constitucional, nos termos acima, pode ser acompanhada de medidas para coibir o envio de mensagens em massa por meio de serviços online desenhados originalmente para a comunicação interpessoal. Entendemos que tal previsão possa ser uma diretriz da lei para o Código de Conduta já previsto no PL, a ser elaborado em diálogo com as plataformas digitais e demais atores sociais diretamente interessados, em órgão multissetorial. Uma norma infralegal, revisada periodicamente e de natureza multissetorial, conteria as ferramentas adequadas para combater a viralização de mensagens nocivas, considerando a arquitetura e funcionamento de cada tipo de serviço: uma forma de preservar a eficácia das normas, sem ignorar as constantes inovações tecnológicas.

O texto aprovado no Senado também traz outras providências para o enfrentamento à disseminação de desinformação nos aplicativos de mensageria: a restrição a disparos em massa, regras para cadastramentos de chips de celulares e obrigatoriedade de identificação de contas automatizadas enquanto tal. Acreditamos que este conjunto de iniciativas contribuirá, de maneira mais efetiva que a rastreabilidade, para conter o fenômeno das fake news nestes serviços e responsabilizar quem atua de maneira dolosa e organizada.

Por todos esses motivos, insistimos na importância de se construírem propostas que respeitem nossa Constituição, que não violem direitos individuais e coletivos e que possam ser atualizadas de forma dinâmica, considerando o processo permanente de inovações tecnológicas e de atualização dos seus usos pela sociedade. Seguiremos trabalhando de modo a garantir que o Brasil tenha uma lei que de fato combata a desinformação, mas sem violar ou restringir direitos dos cidadãos e cidadãs.

Brasil, 21 de outubro de 2021.

Coalizão Direitos na Rede

ARTIGO 19

Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa

Casa da Cultura Digital Porto Alegre

Centro de Direito, Internet e Sociedade do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (CEDIS/IDP) 

Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé

Coding Rights

Coletivo Digital

IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social 

Instituto Beta: Internet & Democracia – IBIDEM

Instituto Educadigital

Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS

Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec

Instituto Liberdade Digital

Instituto Vero

ISOC Brasil – capítulo brasileiro da Internet Society

ITS Rio – Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio

Laboratório de Políticas de Comunicação – UnB (LaPCom-UnB)

Observatório da Ética Jornalística (objETHOS)

Open Knowledge Brasil

Transparência Brasil

ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e Intersexos 

Aliança Nacional LGBTI+

Associação Brasileira de Famílias HomotransAfetivas

Coletivo Revolucionário de Libertação (CORDEL)

Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares – CONTAG

CPDH – CENTRO POPULAR DE DIREITOS HUMANOS

Gestos (soropositividade, comunicação, gênero)

INESC – Instituto de estudos socioeconômicos 

Iniciativa Educação Aberta 

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político

Terra de Direitos


Adesões individuais

Bia Barbosa, representante do 3o setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)

Bruno Bioni,  membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados

Caio Vieira Machado, advogado, mestre em direito pela Sorbonne e em ciências sociais por Oxford, e diretor do Instituto Vero

Cristiana Gonzalez, doutoranda em sociologia pela Unicamp

Danilo Doneda, Diretor do Cedis/IDP e membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados

Diogo Rais, professor de direito eleitoral e digital da Universidade Mackenzie

Estela Aranha, Presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ

Flávia Lefèvre Guimarães, advogada e ex-conselheira do 3o setor no CGI.br

Francisco Brito Cruz, advogado, doutor em direito pela USP e diretor do InternetLab

Helena Martins, Prof. UFC, coordenadora do Telas – Laboratório de Pesquisa em Economia, Tecnologia e Políticas da Comunicação, ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos Humanos

Jonas Valente – Pesquisador – LaPCom-UnB e Telas-UFC  

Laura Conde Tresca, representante do 3o setor no CGI.br

Laura Schertel Mendes, professora da UnB, diretora do Cedis/IDP e membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados

Leonardo Ribeiro da Cruz, Professor da Universidade Federal do Pará e coordenador do Observatório Educação Vigiada

Lucia Maria Teixeira Ferreira, Coordenadora de Estudos e Pareceres da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ e Pesquisadora do Grupo Ethics4AI do CEPES-IDP

Mariana G. Valente, advogada, doutora em direito pela USP e diretora do InternetLab

Paulo Rená da Silva Santarém, pesquisador e professor no UniCEUB, doutorando na UnB, diretor presidente do Instituto Beta

Priscila Gonsales, educadora, pesquisadora e diretora do Instituto Educadigital

Rafael Evangelista, pesquisador da Unicamp, representante do setor técnico-científico no CGI.br

Rita Freire, jornalista, Ciranda (Associação Compas de Comunicação Compartilhada)

Sérgio Amadeu da Silveira, professor da UFABC e ex-conselheiro da comunidade técnica no CGI.br

Veridiana Alimonti, advogada e ex-conselheira do 3o setor no CGI.br

1 Detalhada em artigo do professor Danilo Doneda, disponível aqui