ANPD militarizada: risco para a proteção de dados pessoais

Nesta quinta-feira, 15 de outubro, a Presidência da República publicou os nomes dos diretores indicados para o conselho diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD). Entre os cinco nomes indicados¹, três são membros do Exército brasileiro, em sua maioria com experiência limitada no tema da proteção de dados enquanto direito autônomo. Todos foram designados para os mandatos com maior tempo de duração. A opção do governo Bolsonaro de militarizar a ANPD ignora as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que aponta para a criação de uma autoridade técnica e independente, desconsidera as recomendações internacionais para a constituição de autoridades do tema, abre espaço para o órgão se imiscuir em atividades de vigilância e repressão e coloca em risco a necessária supervisão do tratamento de dados no país. 

Se o desenho institucional da ANPD vinculado à Casa Civil já gerava preocupação pela falta de autonomia administrativa do órgão diante de suas atribuições – como fiscalizar as operações de tratamento de dados do próprio governo -, as nomeações de agora confirmam a hipótese de que a Autoridade não terá a independência e composição que se espera de um órgão responsável por defender direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos brasileiros. 

Preocupa também a pressa do governo em realizar a sabatina dos indicados. Depois de demorar dois anos para criar a ANPD, o governo já agendou para a próxima segunda-feira (19/10), às 9 horas , a sabatina dos conselheiros recém-apontados pelo Senado. O curto intervalo impede apurações aprofundadas dos currículos dos indicados. A escolha da Comissão de Serviços de Infraestrutura – que têm como atribuições específicas² opinar sobre matérias pertinentes a transportes de terra, mar e ar, obras públicas em geral, minas, recursos geológicos, serviços de telecomunicações – também merece críticas, considerando que a proteção de dados pessoais está mais relacionada a temas objeto de outras comissões da Casa, como direitos humanos, tecnologia, defesa do consumidor e direito internacional.

A composição que se desenha para a ANPD é fruto de um processo que apresenta problemas desde a discussão no Congresso Nacional que modificou a LGPD para criar a Autoridade. À decisão do Executivo de criar um órgão vinculado à Casa Civil, em vez de uma autarquia independente, foi somado o Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020³, que instituiu a ANPD permitindo a requisição de membros das Forças Armadas para composição de seu conselho diretor. 

Como já criticada em notas anteriores da Coalizão Direitos na Rede, tal opção do governo demonstra uma clara confusão entre atribuições de órgãos com finalidades completamente diversas, quando não opostas. Garantias de privacidade e proteção de dados pessoais não podem se confundir com a defesa da segurança nacional e a proteção de informações estratégicas para o país. Pelo contrário, atividades de vigilância conduzidas por órgãos de defesa nacional e segurança pública muitas vezes podem colocar em risco direitos e garantias que deveriam justamente ser protegidas pela ANPD, visando a constituição de um sistema equilibrado dentro do Estado Democrático de Direito.

Isso se torna ainda mais grave considerando que, em seus primeiros anos de atividade, a ANPD terá um papel fundamental de construção de parâmetros normativos, instruções e recomendações que orientem a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados em todo o país. O que a Autoridade fizer nesses próximos anos provavelmente definirá o cenário regulatório sobre a proteção de dados no futuro. Nesse sentido, a composição da ANPD deveria ter espelhado o caráter técnico e independente do governo que a função exige, além da perspectiva multissetorial, que foi fator indispensável na elaboração da lei para a garantia dos direitos dos cidadãos brasileiros à privacidade – e ao direito à proteção de dados como sua extensão. 

Levantamento publicado no dia 15 de outubro de 20204 chamou a atenção para o ineditismo da Autoridade brasileira ter como militares três dos cinco membros de seu conselho diretor pelo fato de que apenas países autoritários como Rússia e China possuem composições semelhantes. Não coincidentemente, estes também são países conhecidos por violações da privacidade de seus cidadãos e implementação de regimes de vigilância em massa e escores sociais, conforme noticiado pela Folha de São Paulo5. Em respeito ao direito à proteção de dados pessoais, que em breve pode estar inscrito inclusive na Constituição Federal do país, a atuação da Autoridade brasileira não pode acabar por respaldar o poder público em eventuais violações à LGPD. 

Além do Conselho Diretor, a ANPD contará com um órgão consultivo, o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. De acordo com a lei, o Conselho multissetorial será composto por 23 integrantes e deverá incluir diferentes vozes para a regulação da proteção de dados no país. O decreto que criou a ANPD, entretanto, viola este princípio indicado na lei ao estabelecer que os representantes dos diferentes setores serão escolhidos pelo próprio Presidente da República. Ou seja, não será uma representação de fato, e sim mais uma definição do governo federal, que terá a palavra final sobre essas nomeações. 

Diante da composição que se anuncia para o Conselho Diretor da ANDP, torna-se ainda mais indispensável garantir a legítima e democrática representação dos indicados pela Câmara dos Deputados; Senado Federal; Conselho Nacional de Justiça; Conselho Nacional do Ministério Público; Comitê Gestor da Internet no Brasil; de instituições científicas, tecnológicas e de inovação; confederações sindicais representativas das categorias econômicas do setor produtivo; entidades representativas do setor empresarial relacionado à área de tratamento de dados pessoais; do setor laboral; e de entidades da sociedade civil especializadas no tema, oportunidade em que a Coalizão Direitos na Rede se coloca à disposição para auxiliar a composição do órgão. 

Brasil, 16 de outubro de 2020

¹ Os nomes indicados para o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais são os seguintes: Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, coronel do Exército, mandato de 6 anos (Diretor Presidente); Arthur Pereira Sabbat, coronel do Exército, mandato de 5 anos; Joacil Basilio Rael, Tenente coronel do Exército, mandato de 4 anos; Nairane Farias Rabelo Leitão, advogada, mandato de 3 anos; Miriam Wimmer, gestora pública, mandato de 2 anos.

² Conforme regimento interno do Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/download?tp=atribuicoes&colegiado=59. Acesso em 16 de outubro de 2020.

³ Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020, que aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm

4 ZANATTA, Rafael; SANTOS, Bruna; CUNHA, Brenda; SALIBA, Pedro; GOULART DE ANDRADE, Eduardo. Perfil das Autoridades de Proteção de Dados Pessoais: civis ou militares?. São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2020. Disponível em: https://observatorioprivacidade.com.br/2020/10/16/perfil-de-autoridades-de-protecao-de-dados-pessoais-civis-ou-militares/

5 Soprana, Paula. Bolsonaro nomeia três militares para autoridade de proteção de dados. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/bolsonaro-nomeia-tres-militares-para-autoridade-de-protecao-de-dados.shtml

*Este conteúdo foi produzido como parte do projeto “Defender direitos digitais para assegurar a liberdade de expressão e a privacidade na Internet”, que tem o apoio da Fundação Heinrich Böll.