Ativistas e especialistas atacam projeto que cria Cadastro Nacional de Acesso

A Coalizão Direitos na Rede e o Comitê Gestor da Internet publicaram, nesta terça-feira (18/10), documentos oficiais contra o Projeto de Lei nº 2390/2015, que cria o “Cadastro Nacional de Acesso à Internet” por meio da modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

De acordo com carta escrita aos deputados federais por organizações da sociedade civil, a proposta representa “um retrocesso no ambiente digital e de inovação” e uma “ameaça a direitos fundamentais, haja a vista a instauração de um vigilantismo estatal”.

Em nota oficial, o Comitê Gestor da Internet expressa “grande preocupação com a proposta de criação do denominado Cadastro Nacional de Acesso à Internet” em razão de “barreiras técnicas para sua implementação” e a negligência do “controle parental” e soluções que garantam uma Internet livre, aberta, democrática e segura para crianças e adolescentes.

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Entenda o projeto dos “pastores vigilantes”

O Projeto de Lei nº 2390/2015 — apelidado de “PL do cadastro” — foi proposto em julho do ano passado pelo Deputado Pastor Franklin (PP-MG). Em dezembro, recebeu parecer de aprovação pelo Deputado Missionário José Olímpio (DEM-SP), um pastor que faz parte da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados.

Em seu parecer de aprovação, o Dep. Olímpio apresentou um substitutivo ao projeto propondo uma regra de “conferência de CPF junto à Receita Federal do Brasil para acesso a sítios de conteúdo adulto” e a obrigatoriedade de “aplicativos que impeçam que nossas crianças e adolescentes possam acessar sítios com conteúdos inadequados” (ver aqui).


Deputado José Olímpio (terceiro, da esquerda para direita) recebe o título de “Amigo do Exército” em Itu (SP). Fonte: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (2014)

Em junho de 2016, foi aprovado parecer de autoria do Dep. Missionário Olímpio para modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) em quatro pontos:
(i) Art. 79-A: provedores de conteúdo são “obrigados a restringir conteúdo adulto” para maiores de 18 anos;
(ii) Art. 79-B: equipamentos eletrônicos comercializados no Brasil devem possuir “aplicativo que bloqueie automaticamente o acesso de crianças e adolescentes a sítios com conteúdo impróprio”;
(iii) Art. 80-A: Estado cria o Cadastro Nacional de Acesso à Internet, com relação de todos os usuários e relação de todos os sítios na internet que divulgue conteúdo inadequado;
(iv) Art. 80-B: obriga os terminais de acesso a exigir identificação do usuário e, caso não conste do Cadastro, “proceda ao bloqueio automático do acesso aos sítios que divulguem conteúdos inadequados para crianças e adolescentes”.

A medida tem sido criticada pelos principais especialistas em direitos digitais do Brasil, como Ronaldo Lemos e Sérgio Amadeu — que já se pronunciaram publicamente contra essa “aberração jurídica”.

Além de criar enorme entrave econômico a diferentes atores que permitem a conexão à Internet, o Projeto de Lei nº 2390/2015 cria um sistema de vigilância do Estado com coleta massiva de dados, retirando a liberdade do uso da rede e as técnicas de controle parental recomendadas por entidades especializadas para diminuição da vulnerabilidade infantil no uso da Internet.

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Um projeto inviável e ilegal

Para as entidades que compõem a Coalizão Direitos na Rede, o Projeto de Lei nº 2390/2015, em seu formato final apresentado pelo Dep. José Olímpio (DEM-SP), cria um sistema inédito de censura preventiva e mina todas as garantias civis estabelecidas pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

Em texto escrito coletivamente por diferentes ativistas da Coalizão, são apontadas nove falhas irremediáveis do projeto, que merece ser rejeitado integralmente na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados:

1. Restrição de acesso: qualquer pessoa que não esteja cadastrada teria o acesso à Internet bloqueado;

2. Violação da liberdade de expressão: a elaboração de uma lista de sites com conteúdos inapropriados abriria espaço para decisões arbitrárias;

3. Violação da privacidade: o cadastro feriria a proteção do sigilo à navegação e a privacidade, reconhecida como direito humano pela Organização das Nações Unidas;

4. Inviabilidade técnica: a imposição de uma porta de identificação pessoal em cada provedor de acesso seria inviável, pois em redes locais há dezenas de potenciais usuários;

5. Inviabilidade de dependência de dispositivos à autenticação: as máquinas tornam-se dependentes de software instalado pelo fabricante, impedindo liberdade de utilização de sistemas operacionais;

6. Impossibilidade de garantia de autenticação: a proposta desconsidera o uso de autenticação falsa;

7. Impacto à inovação: o projeto inviabilizaria a Internet das coisas, simplificando a concepção de como a Internet funciona;

8. Falhas na responsabilização: o projeto vai contra o Marco Civil, que diz que operadores pelos serviços de Internet não são responsáveis pelos conteúdos trafegados;

9. Entraves a dispositivos importados: o PL cria entraves à entrada de produtos eletrônicos importados, criando barreiras artificiais no mercado brasileiro;

Em voto apresentado pelo Deputado André Figueiredo (PDT/CE) nesta terça-feira, constata-se que “a proposta em debate não observa os preceitos constitucionais de garantia de direitos individuais”, violando os princípios definidos pelo Marco Civil da Internet de reconhecimento da escala mundial da rede, proteção da privacidade, proteção dos dados pessoais e observações de padrões internacionais para estímulo de boas práticas. Figueiredo também observa que o projeto gera custos inviáveis para o mercado e inibe a utilização de software livre e arquiteturas abertas no Brasil.

O Dep. Figueiredo votou pela rejeição do PL 2390/2015 e convocou seus “pares nesta Comissão a apoiar sua rejeição, por ser uma medida ineficaz, que pode resultar em grande impacto negativo devido a enormes barreiras técnicas para sua implementação e trazer prejuízos para o exercício de direitos já estabelecidos”. A Coalizão Direitos na Rede espera que os membros da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática façam o mesmo.

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Atacando o problema da vulnerabilidade de forma séria

A ideia de um “Cadastro Nacional de Acesso à Internet” é tecnicamente falha, autoritária e ilegal. Se formos levar a sério o debate sobre a vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes no uso da Internet, precisamos de um amplo debate com organizações especializadas no Brasil, como o Instituto Alana e a SaferNet, por exemplo.

Os ativistas da Coalizão Direitos na Rede e os membros do Comitê Gestor da Internet não ignoram esse problema. Há, de fato, vulnerabilidade de menores, exposição à conteúdos violentos e sexuais, e riscos no uso da Internet. Isso não é novidade. As soluções para essas questões, no entanto, passam pelo investimento na educação, a aproximação afetuosa e relacional dos pais com os filhos, o debate aberto sobre o uso das tecnologias de comunicação na infância, a prevenção e punição de ilícitos já existentes e o uso de tecnologias que aprimorem o controle parental.

Tudo isso, respeitando a “dignidade da pessoa humana” e o “livre planejamento familiar”, nos termos da Constituição Federal, bem como o Marco Civil da Internet.

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Publicado por Rafael A. F. Zanatta (Idec/Coalizão Direitos na Rede)