Sobre o Projeto de Lei nº 2628/22
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 2628/22, de autoria do Senador Alessandro Vieira (MDB/SE), que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em meios de comunicação. O projeto trata, principalmente, de produtos e serviços de tecnologia da informação, monitoramento infantil, jogos eletrônicos, publicidade em meio digital, redes sociais e denúncia de violações aos direitos de crianças e adolescentes. Protocolado em outubro de 2022, o projeto já tramitou na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), onde foi aprovado o parecer favorável do relator Senador Flávio Arns (PSB/PR). Em seguida, foi encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) sob a relatoria do Senador Jorge Kajuru (PSB/GO), de onde seguirá para a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informática. Do relator na CCJ, o projeto recebeu voto favorável e doze emendas ao projeto, além de uma emenda proposta pelo Senador Carlos Viana (PODEMOS/MG), apoiada nos termos de uma subemenda.
O PL tem como fundamentos “a prevalência absoluta do interesse das crianças e adolescentes, a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento biopsíquico e a proteção contra a exploração comercial indevida.” Assim, propõe regular “todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado ou que possa ser utilizado por crianças e adolescentes, disponíveis em território nacional, independentemente de sua localização, desenvolvimento, fabricação, oferta, comercialização e operação”.
Nesse sentido, entendemos que o projeto pode ser uma oportunidade para promover uma legislação favorável à relação salutar entre a garantia da segurança de crianças e adolescentes e seus direitos, como privacidade e proteção de dados pessoais, assim como o melhor interesse e a autonomia progressiva destes. Entretanto, precisamos apontar algumas preocupações, tanto em relação ao mérito da proposta e os riscos colocados para a proteção integral da infância contra exploração comercial e exibição de publicidade infantil, da forma como está apresentada no relatório apresentado pelo Relator, Senador Jorge Kajuru;, quanto em relação ao processo de tramitação do PL, no que se refere à falta de abertura para debates mais amplos com a sociedade civil e demais setores interessados. Considerando a discussão proposta pelo PL 2628/2022, a Coalizão Direitos na Rede torna públicas suas reflexões sobre a iniciativa, no sentido de contribuir para um debate equilibrado e democrático sobre o tema, em consonância com os padrões internacionais de proteção a crianças e adolescentes.
A inconstitucionalidade do relatório legislativo com base no art. 227 da Constituição Federal
Embora o texto inicial do Projeto de Lei garantisse a proibição da publicidade direcionada diretamente à criança em serviços e produtos de tecnologia (art. 10º), a nova versão do relatório legislativo propõe a supressão total desse dispositivo. O relatório inclui as crianças no art. 11º, formulado inicialmente para estabelecer parâmetros para a veiculação de publicidade apenas para adolescentes, equiparando a proteção legal dada a esses dois grupos etários e autorizando a veiculação de publicidade direcionada à criança em múltiplos meios de comunicação e informação.
A publicidade direcionada à criança é aquele conteúdo que visa conversar diretamente com a criança, muitas vezes utilizando elementos do universo infantil para persuadi-la ao consumo e buscando atingi-la para que as crianças se tornem promotoras de vendas dentro de suas famílias. Trata-se de prática antiética que prioriza os interesses de lucro e de vendas de produtos por empresas anunciantes em detrimento do melhor interesse da criança. Como efeito, pode agravar o estresse familiar, incentivar a criança ao consumo de produtos prejudiciais à saúde e impor pressões estéticas e de consumo capazes de atingir a autoestima e a autopercepção estética dos mais jovens.
A alteração do relatório legislativo contraria a interpretação vigente de proibição da publicidade infantil, que possui respaldo constitucional. O artigo 227 da Constituição Federal estabelece a obrigação compartilhada entre toda a sociedade de assegurar os direitos das crianças com absoluta prioridade. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/1990) reconhece a criança como pessoa em especial fase de desenvolvimento físico, social e emocional e busca garantir o seu melhor interesse em qualquer tipo de relação. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) já define que a publicidade dirigida a crianças se aproveita da deficiência de julgamento e experiência desse público e, portanto, é abusiva e ilegal. O Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) determina a proteção da criança contra toda forma de violência e pressão consumista e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.
Ao permitir a ampla veiculação de publicidade para crianças em serviços e produtos de tecnologia, o escopo do Projeto de Lei abre margem para uma série de práticas prejudiciais que podem impactar negativamente o desenvolvimento das crianças. Em primeiro lugar, autoriza-se a comunicação e persuasão direta da criança ao consumo em múltiplos meios tecnológicos, como plataformas digitais desenhadas para elas, assistentes inteligentes, Inteligências Artificiais Generativas, brinquedos interativos ou quaisquer outros dispositivos conectados. A inserção de anúncios em produtos e serviços tecnológicos destinados às crianças cria um ambiente altamente persuasivo, onde o entretenimento, a educação e o consumo se fundem de maneira sutil. Buscando lucro sobre o tempo conectado das infâncias, o setor econômico ganha incentivos para desenhar um ambiente digital que estimula uma relação contínua entre crianças e tecnologias. Ao passar mais tempo imersas nessas plataformas, as crianças ficam expostas a uma quantidade maior de publicidade, o que pode influenciar suas escolhas de consumo de forma significativa. Com um escopo tão grande, a alteração legislativa pode acabar por permitir, ainda, o retorno da publicidade direcionada à criança na televisão aberta.
Portanto, ao permitir a veiculação de publicidade direcionada à criança em produtos e serviços de tecnologia, o relatório legislativo não só compromete a proteção dos direitos das crianças, mas também contribui para a criação de um ambiente digital altamente comercializado, onde o consumo é incentivado de forma incessante, muitas vezes às custas do bem-estar e desenvolvimento saudável das crianças. Os efeitos dessa mudança na legislação podem ser graves e difíceis de prever, dada a natureza ampla do Projeto de Lei e a rápida evolução tecnológica. É essencial que haja uma análise cuidadosa dos potenciais impactos dessas propostas, a fim de proteger adequadamente os direitos e o bem-estar das crianças frente aos interesses comerciais das empresas.
O que é inovador no PL nº 2628/22 no que tange à regulação da publicidade em produtos e serviços da informação é a vedação absoluta da perfilização de crianças e adolescentes para fins de direcionamento de publicidade, prevista em seu art. 12º e mantida no relatório legislativo. O perfilamento para fins comerciais é uma prática invasiva que compulsivamente registra e analisa os hábitos de interação com as tecnologias para tentar prever o desejo do consumidor e oferecer itens aos quais ele seja mais propenso a comprar, tornando muito mais difícil a resistência à publicidade. A disposição restritiva do art. 12º está alinhada com o Comentário Geral nº 25 das Nações Unidas, sobre direitos da criança em relação ao ambiente digital, que detalha a aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança no mundo digital, tratado de direitos humanos mais ratificado em todo o mundo.
A CDR defende a participação social e prioriza a proteção das infâncias nos meios de comunicação
A Coalizão Direitos na Rede é uma articulação de mais de 50 organizações da sociedade civil – entre elas entidades de pesquisa acadêmica, defesa do consumidor e de direitos humanos – que, há mais de sete anos, atuam em conjunto na defesa de direitos como acesso, privacidade e liberdade de expressão no ambiente online. Neste sentido, integramos a parcela da sociedade brasileira preocupada com a regulação das plataformas digitais, em virtude dos diversos riscos que representam para a sociedade em geral, desde a disseminação de desinformação, que chega a ameaçar, em última instância, a democracia, até a saúde mental dos seus usuários. Este tema tem sido objeto da atuação sistemática de nossas organizações, que, além da produção de pesquisas e do acompanhamento da atuação do Legislativo, do Judiciário e do Executivo a esse respeito, têm participado de debates dentro e fora do Brasil no esforço de buscar as melhores soluções para uma regulação democrática e participativa das plataformas digitais.
Desta forma, reconhecemos a importância da iniciativa legislativa em discussão, que visa proteger a interação de crianças e adolescentes com as plataformas digitais através da determinação de obrigações às empresas, especialmente aquelas que se referem ao fortalecimento das medidas de segurança em relação a este público.
Entretanto, entendemos que projetos de lei que se proponham a regular o exercício de direitos fundamentais, impactando diretamente milhões de usuários de redes sociais, de aplicativos de mensageria instantânea e de quaisquer produtos ou serviços conectados à Internet, precisam ser desenhados em um amplo processo de discussão e debate público.
Um caminho para a regulação pública democrática das plataformas digitais deve, portanto, considerar o acúmulo dos debates sobre o tema já realizados pelo Congresso Nacional, mas, sobretudo, começar a partir de um debate com a sociedade. Exemplos profícuos neste sentido são os processos que levaram à aprovação do próprio Marco Civil da Internet, legislação celebrada em todo o mundo, e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Além destes, o próprio PL 2630/2020, em trâmite perante a Câmara dos Deputados, já carrega um grande arsenal de argumentos sobre regulação de plataformas digitais focada no conteúdo que também não pode ser desprezado nos debates do PL 2628/2022.
A regulação de plataformas digitais é tema complexo e que vem sendo enfrentado em todo o mundo, com um abrangente processo de debate entre atores políticos e a sociedade, por meio de diálogos abertos, essenciais para uma comunicação democrática. A interpretação de discursos a serem impedidos ou sancionados, mesmo com base em lei, precisa ser feita com equilíbrio, para evitar impactos à liberdade de expressão, razão pela qual o debate público amplo é o melhor caminho.
Ratificando nossa preocupação com o cenário ora descrito e o nosso compromisso em buscar saídas consistentes para o debate proposto, a Coalizão Direitos na Rede solicita que o Parlamento brasileiro considere as questões aqui apresentadas e não vote o PL 2628/2022, não antes da concretização de um amplo e participativo debate, que ouça os diferentes setores que serão atingidos pela proposta, inclusive as crianças e os adolescentes.