Coalizão Direitos na Rede manifesta desacordo com os primeiros votos emitidos no julgamento pelo STF  da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet

Em continuidade às diversas manifestações da Coalizão Direitos na Rede (CDR) pela construção de um ambiente digital mais democrático e íntegro1, esta nota expressa desacordo com os rumos do julgamento do Recurso Extraordinário 1037396 (Tema de Repercussão Geral 987) – que envolve a constitucionalidade do artigo 19 do MCI – pelo Supremo Tribunal Federal e oferece recomendações para a melhor solução da questão. Em março de 2023 a CDR apresentou contribuições ao julgamento, à época da audiência pública realizada pela corte. 

Vale ressaltar que essa Coalizão já se manifestou diversas vezes contra a atuação negligente das plataformas quando da circulação de conteúdos ilícitos e problemáticos. Inclusive, desde 2020, dedica grande parte de seu trabalho à busca de arranjos regulatórios para aumentar e densificar os deveres e obrigações legais das big techs, que gozam de tanto poder e ingerência no debate público e na expressão das pessoas. O modelo proposto pelo ministro relator Dias Toffoli, no entanto, cria uma gama de problemas ao tentar resolver outros. 

Pela pertinência temática, apresentamos os enunciados formulados na ocasião e, abaixo, uma síntese dos riscos provenientes das obrigações e modulações trazidas nos dois primeiros  votos apresentados até o momento.

Enunciados defendidos pela CDR:

  1. O modelo de responsabilidade de intermediários do Marco Civil da Internet é elemento regulatório central para o estabelecimento de uma agenda básica de Direitos Humanos na era digital e no Brasil.
  2. Plataformas de Internet não devem ser colocadas na posição do Judiciário, qual seja, no lugar de julgar o que é ou não ilegal perante o sistema jurídico brasileiro;
  3. Declarar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil não significa privilegiar a autorregulação das plataformas, esta não é a posição da CDR, mas sim proteger a liberdade de expressão dos usuários contra os possíveis arbítrios delas ou de agentes poderosos.
  4. Declarar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil não impede que plataformas continuem sua atividade de moderação de conteúdo – bem como não impede que avancemos em modelos regulatórios que criem mais obrigações de transparência e responsabilidade às plataformas.
  5. A responsabilização e definição de regras para lidar com os problemas discutidos durante o julgamento demanda uma legislação específica a ser aprovada pelo Congresso Nacional. Por isso, a CDR tem se pronunciado sobre a urgência da aprovação de uma regulação democrática para as plataformas digitais.

Imprecisões e riscos advindos dos votos apresentados até o momento:

Os dois votos proferidos no julgamento do RE 1037396, pelo Ministro Dias Toffoli e pelo Ministro Luiz Fux, seguiram o caminho da declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que estipula o atual regime de responsabilidade civil de provedores de aplicações de Internet por conteúdos de terceiros. Em substituição ao presente modelo, o Ministro Toffoli apresentou um rol de tipos de conteúdos cuja circulação online ensejaria a responsabilização objetiva dos provedores de aplicações, como regra sem a necessidade de decisão judicial, em aplicação da previsão do art. 21 do MCI, e em outros casos excepcionais sem a necessidade sequer de  notificação extrajudicial. Neste segundo grupo, listou conteúdos que configurem ofensa ao Estado de direito, atos de terrorismo, indução ao suicídio, divulgação de desinformação sobre eleições, racismo, entre outros.

Seguido pelo Ministro Luiz Fux, o voto desperta enorme preocupação. Suas imprecisões demonstram incompreensão sobre as práticas de moderação de conteúdo e modelos de negócio do ecossistema digital. Suas possíveis consequências podem extrapolar o que aparenta estar na perspectiva dos Ministros. Abaixo destacamos os principais riscos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos apresentados.

  1. Transposição equivocada da função e responsabilidade de grupos de comunicação que operam em regime de concessão

O Min. Toffoli equipara o modelo dos provedores de aplicações de Internet ao dos meios de comunicação social tradicionais, ignorando as diferenças radicais entre esses dois papéis. Primeiro, é necessário destacar a ampla diversidade do conceito de provedores de aplicações de Internet, que não se limita às grandes plataformas de redes sociais, ferramentas de busca ou marketplaces. O conceito legal definido pelo Marco Civil da Internet é aberto o suficiente para abarcar todas as categorias de serviços oferecidos online -não só os modelos de negócio comerciais e tampouco apenas aqueles que são intermediários ativos em relação aos conteúdos postados por terceiros.

E mesmo as grandes plataformas de redes sociais tantas vezes citadas pelo Exmo. relator não devem ser confundidas com editoras de conteúdos de profissionais contratados, tal como opera um jornal em regime de concessão de rádio e televisão, exercendo pleno controle sobre a produção do que é veiculado. Sem ignorar as faces perniciosas dos algoritmos e a exploração comercial, o grande benefício social dessas empresas é permitir a comunicação livre sem exigência de prévio controle privado sobre as manifestações dos cidadãos e cidadãs

O reconhecimento de que as plataformas digitais têm responsabilidade e devem ser responsabilizadas sobre determinadas contas e conteúdos – devido aos incentivos e  comportamentos induzidos por seus sistemas de recomendação e moderação –, como o próprio MCI já estabelece em seu artigo 3o, não exige equipará-las aos grupos de comunicação social tradicionais. Pelo contrário, essa perspectiva reforça a falsa narrativa das próprias empresas sobre a suposta eficiência de seus sistemas algorítmicos no perfilamento das preferências de seus usuários e direcionamento de anúncios, mediante práticas opacas a respeito da real eficiência e eficácia dos seus sistemas.

  1. O artigo 19 do MCI não concede imunidade às plataformas, mas estabelece limites e vias pertinentes de responsabilização.

O artigo 19 não concede imunidade às grandes plataformas digitais nem  limita a atuação de sistemas e equipe na moderação de contas e conteúdos no combate à produção e distribuição de conteúdos nocivos e ilegais. O dispositivo apenas estabelece um regime de responsabilidade civil que depende de uma ordem judicial para remoção de conteúdo, ao invés de delegar o julgamento sobre a legitimidade de determinados conteúdos somente para as empresas.  O problema reside em sabermos como, efetivamente, operam e qual o nível de  eficiência destes sistemas. A solução não será moderar e/ou retirar mais conteúdo, e sim moderar melhor. Retirar o artigo 19 do ordenamento jurídico, mediante a declaração de inconstitucionalidade proposta pelo Min. Toffoli, e acatada pelo Min. Fux, causará ainda mais insegurança para todas as partes envolvidas, sejam usuários, sejam empresas, com uma tendência de aumento de remoção preventiva inclusive de conteúdos legítimos. Uma maior responsabilidade das plataformas digitais, ao contrário, pode ser alcançada com uma legislação que aprofunde o que dispõe o próprio Marco Civil da Internet, aumentando as regras sobre transparência e devido processo na moderação de conteúdo, como disposto no texto do PL 2630/2020.

A ausência de uma decisão judicial prévia subverte o papel do Judiciário na análise da legalidade de conteúdos, violando garantias processuais e abrindo espaço para arbitrariedades. 

  1. O regime de responsabilidade trazido no voto do Min. Dias Toffoli gera insegurança jurídica, afeta a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa de forma desproporcional

A proposta do Ministro, ao responsabilizar as plataformas digitais sem necessidade de notificação judicial ou extrajudicial e, em alguns casos, de forma automática desde a publicação, levaria a uma mudança radical no modelo de internet que conhecemos hoje. Isso porque essa abordagem pressiona as plataformas a adotar políticas de moderação mais severas para evitar penalizações, resultando, na prática, em remoção excessiva e “preventiva” de conteúdos, incluindo conteúdos legítimos. Isso significa executar um sistema que não teve seus precedentes testados e  que transfere a decisão sobre o que deve ou não permanecer online para as empresas privadas, condicionando a liberdade de expressão aos critérios opacos de moderação e recomendação algorítmica. É fundamental reconhecer que tais algoritmos, frequentemente defendidos pelas plataformas como eficientes, não são transparentes e falham na diferenciação de conteúdos prejudiciais e legítimos, prejudicando, sobretudo, grupos sociais vulneráveis e minorias. 

A liberdade de imprensa também fica comprometida e desidratada no contexto de responsabilidade objetiva de provedores de aplicações, por promover a remoção preventiva de conteúdos de cunho investigativo e político que potencialmente seriam categorizados no rol de conteúdos ilícitos estabelecidos no decálogo apresentado pelo Ministro Toffoli.

Para enfrentar o relevante problema da circulação ainda massiva de conteúdos ilícitos e violadores de direitos nas redes sociais, é fundamental, antes de mais nada, diferenciar provedores de aplicações ativos dos não ativos em relação a conteúdos de terceiros em circulação no ambiente digital, mantendo o regime de responsabilidade geral para provedores de aplicações intermediários previsto no artigo 19 do MCI. Para o caso dos provedores ativos, como as redes sociais e ferramentas de busca, defendemos a necessidade de regras claras para seu funcionamento, que incluam obrigações de  (i) declarar seus números de usuários; (ii) relatórios periódicos de impacto; (iii) transparência sobre políticas internas e moderação de conteúdo; e (iv) devido processo na moderação realizada. 

Muitas dessas regras já foram democraticamente discutidas nos últimos quatro anos, especialmente no contexto da tramitação do  PL 2630/2020 no Congresso Nacional. A construção dessas regras deve ocorrer no espaço apropriado para o debate democático, na Casa dos representantes eleitos, no Legislativo. Diante da inércia legislativa e das políticas insuficientes das plataformas digitais, a CDR entende que, agora, cabe ao Supremo buscar uma interpretação conforme à Constituição, que não relegue nossa liberdade de expressão ao arbítrio de empresas e que nos leve a um regime de  silenciamento generalizado e injustificado. Ao contrário do que pode parecer, não serão as redes sócias as mais afetadas por uma mudança geral no regime de responsabilidade de intermediários da internet, mas o conjunto dos demais serviços em operação na rede e os milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras – principalmente aqueles que usam plataformas digitais para defender direitos e denunciar problemas em nossa sociedade.A adoção da interpretação conforme já defendida pela CDR propõe uma via alternativa ao binarismo do constitucional versus inconstitucional. Esta via possibilita o equilíbrio entre a manutenção de garantias e direitos adquiridos por um longo processo democrático de construção ao mesmo tempo em que avança em oferecer respostas necessárias às demandas de um ambiente virtual mais democrático, íntegro e saudável.

Por fim, ressalta-se que o modelo de responsabilidade do MCI segue um padrão internacionalmente aceito de “notificação e derrubada” (notice and takedown) condicionado à ordem judicial, alinhando-se aos princípios de liberdade de expressão, proteção de direitos humanos e responsabilidade sobre conteúdos ilícitos. 

Por estes motivos, a Coalizão Direitos na Rede, que protagoniza, junto com suas mais de 50 entidades, a defesa veemente dos direitos humanos no contexto digital, recomenda que o STF reconheça a constitucionalidade do artigo 19 em uma abordagem de interpretação conforme à Constituição que estabeleça (i) a responsabilidade civil das redes sociais e ferramentas de busca por conteúdos promovidos a partir de contratação de ferramentas pagas de ampliação de alcance ou direcionamento de conteúdos , (ii)  obrigações de transparência sobre moderação de conteúdo e canais de comunicação com usuário para garantia de devido processo em tais operações: e (iii) por meio de recomendação ao Congresso Nacional, deveres de mitigação dos riscos sistêmicos aos direitos fundamentais resultantes do modelo de negócios de tais empresas, como já expressamos por meio de nota pública2.

1  COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Contribuições da CDR à audiência Pública do STF que pretende julgar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. 28 mar. 2023. Disponível em https://direitosnarede.org.br/2023/03/28/contribuicoes-cdr-audiencia-publica-stf-constitucionalidade-artigo-19-mci/

2  Ler nota completa aqui: https://direitosnarede.org.br/2024/11/14/nota-sobre-constitucionalidade-do-art-19-do-mci/

Brasília, 18 de dezembro de 2024.

Coalizão Direitos na Rede