A Coalizão Direitos na Rede, grupo de mais de 50 entidades brasileiras defensoras dos direitos digitais, vem por meio desta nota manifestar seu repúdio em relação aos recentes ataques realizados contra o atual modelo de governança da Internet no País, reconhecido internacionalmente e pilar de uma governança democrática e tecnicamente qualificada.
Em 2024, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) apresentou o Projeto de Lei (PL) 4557/2024 propondo a transferência da supervisão do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Com participação dos setores empresarial, científico e técnico, do terceiro setor e governamental (com maioria de membros do Governo), o CGI.br exerce há 30 anos um papel fundamental e dedicado às regras e normas fundamentais ao bom funcionamento da Internet. Além de transferir suas atribuições para a Agência, o projeto de lei também altera a composição do CGI.br, incluindo representantes do Poder Legislativo e retirando o representante do “notório saber” – um ataque ao caráter técnico do comitê. O PL 4557 recebeu, no último mês, o apoio público da Anatel e de seus diretores.
Em paralelo, no dia 03 de abril, o conselho diretor da Agência Nacional de Telecomunicações anunciou para 2027 a extinção da Norma 4/1995, criada antes mesmo da fundação da Agência pelo Ministério das Comunicações. Esta norma estabelecia a separação entre serviços de telecomunicações e os serviços de conexão à internet, classificados como Serviço de Valor Adicionado (SVA) pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT), e vem se mostrando fundamental para a promoção do desenvolvimento da Internet e o acesso a ela. A caracterização particular do SVA foi essencial para a criação de um ambiente favorável à inovação tecnológica e a redução da concentração dos agentes econômicos deste mercado.
Além da extinção da norma ter sido decidida sem qualquer participação social – sem que o Conselho Consultivo da Anatel e o próprio CGI.br fossem ouvidos – , a Agência não tem prerrogativa legal para suspender uma norma criada pelo Ministério das Comunicações que não trata de telecomunicações.
A Anatel, de acordo com a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), é autarquia que, a despeito de possuir independência em relação ao Poder Executivo, se constitui como entidade implementadora de políticas públicas e não formuladora e, portanto, não pode suspender uma norma criada pelo Ministério das Comunicações. Além disso, não possui atribuições legais para tratar de outros temas que não sejam estritamente telecomunicações; os termos da Norma 4/1995 separando serviços de valor adicionados dos serviços de telecomunicações foram encampados pela LGT, no art. 61, deixando claro, portanto, que a Agência não tem atribuição legal para editar normas sobre esta matéria, conforme disposto no art. 19, da mesma LGT
Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
Sendo assim, a decisão da ANATEL padece de vício de origem, pois a agência não possui competência legal para transformar o SVA em serviço de telecomunicações, especialmente porque a Norma 4, editada pela Portaria 148/1995, é parte da política pública instituída pelo Poder Executivo naquele ano, quando na mesma data o Ministério das Comunicações junto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, editaram a Portaria 147/1995, por meio da qual foi instituído o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), consolidado posteriormente no Decreto 4.829/2003, com atribuições diversas. Entre elas estão a de “estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil” e a de “articular as ações relativas à proposição de normas e procedimentos relativos à regulamentação das atividades inerentes à Internet”.
O CGI.br é um comitê multissetorial com forte presença do governo federal, inclusive com um assento da ANATEL, já que sua coordenação é ocupada por uma representante do Ministério da Ciência e Tecnologia e nove dos 21 membros do comitê são representantes do governo federal.
O comitê supervisiona a única entidade com personalidade jurídica da estrutura de governança – o NIC.br, sociedade civil sem fins de lucro de direito privado que, entre outras atribuições e projetos, gerencia o serviço de distribuição de nomes de domínio e endereços IP, além de gerir o sistema nacional de Pontos de Troca de Tráfego da rede.
Por conseguinte, qualquer medida que altere a política pública definida pelo MCOM e MCTI em 1995, e consolidada pelo Governo Lula em 2003, deveria necessariamente ter passado não só pelos Ministérios, mas também pelo próprio CGI.br, inclusive e especialmente por conta do que ficou determinado pelo Marco Civil da Internet, editado em 2014, quando a lei trata dos Poderes Públicos, no sentido de que:
Art. 24. Constituem diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no desenvolvimento da internet no Brasil:
I – estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica;
II – promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da internet no Brasil;
Diga-se também que a extinção da Norma 4, com a equiparação entre serviços de telecomunicações e SVA, traz implicações de ordem tributária, com forte potencial para o encarecimento do serviço de conexão a Internet, estabelecido como serviço essencial pelo Marco Civil da Internet, com possíveis impactos negativos para a universalização do acesso à Internet.
Sendo assim, antes de se discutir a conveniência e oportunidade de alterar política pública consolidada por leis e decretos posteriores ao longo dos últimos dez anos, é necessário reconhecer o vício na decisão da ANATEL, diante da incontornável falta de competência legal para alterar uma política pública consolidada no país. A atual estrutura de governança, que essa decisão busca alterar, é responsável pelo desenvolvimento sustentado e organizado da Internet no Brasil, inclusive com a implantação da infraestrutura de pontos de troca de tráfego, utilizada por empresas que exploram o serviço de conexão a Internet e de aplicações de conteúdos e outros serviços, responsável pelo tráfego de 40 Tbit/s em 38 localidades onde o projeto IX.br está presente.
É imprescindível que a discussão sobre possível atualização da Norma 4 se dê nas instâncias definidas por lei e revestida do grau necessário de participação democrática.
A Anatel já tinha apontado para a extinção da Norma nº 4 em 2022, na consulta pública nº41. Na ocasião, a Coalizão Direitos na Rede já tinha argumentado em contrário, mostrando como a extrapolação de suas atribuições legais criaria insegurança jurídica e problemas normativos ao contrariar o arcabouço legal consolidado na Lei Geral de Telecomunicações, no Marco Civil da Internet e em decisões do Supremo Tribunal Federal.
A justificativa defendida pela Anatel para extinguir a Norma nº 4/1995 está ancorada em dois pilares: 1) a ausência de necessidade técnica para a separação entre serviços de telecomunicações e Serviços de Valor Adicionado (como o Serviço de Conexão à Internet – SCI), e 2) a Reforma Tributária, prevista para 2027, que eliminará as diferenças em tributos como ISS e ICMS, unificando-os no novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
É evidente que, desde sua criação, a experiência e o conteúdo difundido por meio da Internet mudou, mas suas características essenciais e aplicações nos mais diversos suportes, seu crescente e contínuo desenvolvimento foram possíveis por suas normas e protocolos técnicos e abertos. Embora as tecnologias de rede tenham evoluído e, em muitos aspectos, se integrado, ainda há diferenças importantes que justificam a manutenção de distinções.
A internet é uma rede mundial de computadores que se comunicam usando protocolos comuns. O modelo OSI (Open Systems Interconnection), criado pela ISO (International Organization for Standardization), é uma estrutura de modelo teórico que organiza os diferentes protocolos em camadas e possibilita que cada agente do ecossistema seja responsabilizado e regulado no limite da sua atuação técnica. A diferenciação estabelecida na Norma 4 reflete essa separação técnica e possibilita que diferentes regulações incidam sobre diferentes serviços.
Além disso, trata-se de tecnologias diferentes. Apesar de, por exemplo, o VoLTE1 permitir que a voz seja transmitida como dados, a infraestrutura subjacente para redes móveis e fixas ainda pode diferir significativamente. Do ponto de vista do uso do espectro, o espectro de radiofrequência também é gerido de forma diferente para redes móveis e fixas, e isso pode impactar como os serviços são prestados e regulamentados. Ademais, as aplicações e o uso dos serviços podem variar entre redes fixas e móveis, o que justifica a manutenção de distinções regulatórias.
Se existe um problema de tributação e arrecadação que a Anatel pretende endereçar, não é colocando a Internet sob sua fiscalização que o Brasil vai resolver essa questão, menos ainda se tal medida for adotada de maneira unilateral e ilegal.
A Anatel tem dado repetidas demonstrações de intenção de trazer para si a prerrogativa de regular diversos aspectos da Internet e tem criado sucessivas medidas – a despeito de estar dentro de suas atribuições ou não – para atingir esse objetivo. No entanto, a Agência já tem a hercúlea tarefa de implementar a política nacional de telecomunicações, administrar o espectro de radiofrequências e o uso de órbitas, fiscalizar a prestação de serviços em regime privado e aplicar sanções em casos de infrações de ordem econômica. E há muito o que se fazer nesse sentido.
Para darmos conta, como sociedade, do enfrentamento aos problemas hoje constatados na Internet precisamos, mais do que nunca, de instituições preparadas para lidar com as suas especificidades E de um conjunto de instituições capazes de cooperar em prol de um ambiente regulatório tecnicamente eficiente, multissetorial e democrático.
A extinção da Norma nº 4 e o Projeto de Lei 4557/2024 demonstram uma visão apequenada do que é a Internet e da diversidade de aspectos que precisam ser cuidados para bem zelá-la e governá-la. Mais do que isso, são ataques graves ao Comitê Gestor da Internet, à própria governança da Internet no Brasil e à democracia.
- VoLTE: “VoLTE é a nomenclatura que representa a tecnologia de chamadas de vídeo e voz através da rede LTE, conhecida também como 4G. No Brasil, as chamadas de voz utilizam as redes GSM e WCDMA, enquanto as redes 3G e 4G são responsáveis pelas transmissões de dados para navegação de internet. O VoLTE permite a transmissão de chamadas de voz ou vídeos através da rede 4G, por meio do protocolo IP entre dois dispositivos compatíveis. Com o VoLTE as chamadas são tratadas como dados, e operam dentro da frequência e do padrão LTE.” por Bruno Salutes em https://canaltech.com.br/internet/volte-o-que-e/ ↩︎