A Coalizão Direitos na Rede tem historicamente se manifestado e participado das construções regulatórias que se debruçam sobre o ecossistema digital. Atuamos ativamente no processo de elaboração do Marco Civil da Internet (MCI), da Lei Geral de Proteção de Dados, do Projeto de Lei de regulação da IA (recentemente aprovado no Senado Federal) e em tantos outros. No caso do Julgamento do Recurso Extraordinário 1037396 (Tema de Repercussão Geral 987) e Recurso Extraordinário 1057258 (Tema 533), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não é diferente. Desde 2023, publicamos contribuições ao julgamento em tela (nota de rodapé), organizações da CDR participaram da audiência pública promovida pelo STF, publicamos texto sobre o julgamento trazendo recomendações iniciais1 e, após uma sequência inicial de dois votos tecnicamente imprecisos e com consequências prejudiciais aos direitos humanos, nos manifestamos neste momento reconhecendo o esforço de equilíbrio aos direitos fundamentais na rede presentes no voto do Ministro Luis Roberto Barroso, proferido em sessão no último dia 18 de dezembro. Nossa posição se alicerça em três motivos: 1. proporcionalidade em relação às competências do Judiciário, 2. ponderação de direitos, 3. acolhimento da diversidade de atores impactados
- Interpretação proporcional aos limites da competência do STF
Uma das principais preocupações da sociedade civil articulada na CDR a respeito do julgamento diz respeito à potencial inobservância ao longo processo participativo que legitimou o MCI e aos quatro anos de debate intenso em torno de uma construção legislativa para a regulação de plataformas digitais de redes sociais. A complexidade, a urgência e o alcance global da temática demandam construções alicerçadas na participação ampla e democrática sob pena de ampliar violações de direitos. A CDR defende, desde o início, que esta temática seja desenvolvida com a granularidade necessária a temas de tamanha complexidade no Congresso Nacional. O Projeto de Lei Nº 2.630 de 2020 em seu último relatório público marcou um acúmulo importante de medidas para responder a esses problemas.
Como analisado em posicionamento prévio da CDR2, acreditamos que os primeiros dois votos proferidos no julgamento em questão desaguaram na proposição de um pacote de obrigações e medidas que inovam exageradamente o arcabouço jurídico brasileiro, ao modificar por completo as regras que balizam aspectos substanciais do ecossistema digital, com impacto significativo para todos os provedores de aplicações regidos pelo MCI. De forma assertiva, o voto do ministro Barroso concilia os questionamentos abertos pelos recursos analisados com as limitações legais e institucionais do STF. O Ministro Barroso apresenta caminhos interpretativos concretos, com hipóteses de aplicação de um regime de exceções, critérios de deveres colaterais e mecanismos de controle social. Ao mesmo tempo em que oferece respostas mais equilibradas, o voto mantém o espaço regulatório que é de competência do Congresso.
Respeitando o princípio da repartição de poderes, o voto termina com um apelo ao Legislativo brasileiro, cuja inércia levou ao julgamento em questão. O Ministro sugere um órgão regulador independente, multissetorial (que considere a importante contribuição do Comitê Gestor da Internet no Brasil) e que esteja apto a receber relatórios de transparência das empresas e a fiscalizar o cumprimento de seus deveres. Endossamos essa posição do Ministro. Ao longo do amadurecimento do debate sobre regulação de redes sociais, aplicativos de mensageria e ferramentas de busca no Brasil percebemos que não há, no contexto atual, um órgão que reúna as competências necessárias para a devida regulação de plataformas. A independência desta instituição é importante para afastar possibilidades de cooptação, equilibrar direitos e acomodar a complexidade do ecossistema digital.
- Proposta de regime de responsabilidade que equilibra direitos e garantias
Em diversos momentos das sessões de julgamento, alguns Ministros do STF enfatizaram que a defesa da liberdade de expressão tem sido instrumentalizada por agentes mal intencionados para justificar a manutenção de conteúdos enganosos, odiosos e que atacam instituições democráticas. A liberdade de expressão certamente não é um direito absoluto. Ao mesmo tempo, não pode ser um direito ignorado.
Nesse sentido, entendemos que a tese trazida pelo ministro Barroso baseada na responsabilidade civil subjetiva, a partir da notificação da plataforma sobre o conteúdo postado por terceiro, é mais equilibrada do que as hipóteses de responsabilidade objetiva aventadas nos votos anteriores. Neste regime de responsabilização, será possível algum nível de análise do conteúdo por parte da plataforma, desincentivando remoções massivas de maneira preventiva por parte das redes sociais. O cenário de responsabilidade objetiva das empresas, como dissemos em posicionamento anterior3, gera insegurança jurídica e afeta a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa de forma desproporcional. Assim, acerta o ministro Barroso ao trazer o modelo de responsabilidade subjetiva como regra, e, mais ainda, ao manter o regime do art. 19 para casos de crimes contra a honra, cujo julgamento deve continuar sob o escrutínio do Poder Judiciário.
Outro ponto positivo no voto do ministro Barroso é o estabelecimento da responsabilidade subjetiva das empresas pela falha na mitigação de riscos sistêmicos decorrentes de seu modelo de negócios, o que faz com elas tenham que zelar por um ambiente protetor de direitos e demonstrar esforços para mitigar riscos advindos de conteúdos danosos e de usuários maliciosos. Trata-se de medida importante na contenção, por exemplo, de discursos de ódio e desinformação, que têm invadido e dominado o debate público, colocando em risco a própria democracia.
Consideramos também como fundamental o entendimento de que as plataformas digitais tenham obrigações de produzir relatórios de transparência sobre suas atividades de moderação de contas e conteúdos, apresentando número total de notificações sobre conteúdos extraordinariamente graves e ilícitos; as medidas tomadas na sequência das notificações sobre esses conteúdos; o número de casos tratados por meio automatizado e o tempo médio para adoção da medida. A obrigação de transparência por parte das plataformas digitais é um instrumento fundamental para que a sociedade e as autoridades brasileiras possam saber como, efetivamente, operam o nível de eficiência dos sistemas algorítmicos e a tomada de decisão. Nesse sentido, avançar e aprimorar ainda mais as obrigações de transparência é estratégico para reduzir a assimetria de poder existente entre as plataformas digitais e a sociedade brasileira.
Às plataformas digitais consideradas provedores ativos ao divulgar conteúdos de terceiros, defendemos ainda deveres de declarar o número de usuários no Brasil; transparência sobre políticas internas e moderação de conteúdo; e devido processo na moderação realizada.
- Avanço no acolhimento da diversidade de agentes impactados
Cabe sublinhar que, em determinado ponto do julgamento, os ministros Cristiano Zanin e Edson Fachin destacam a pertinência da diferenciação entre os provedores de aplicação existentes, entendendo que o recorte do julgamento poderia mudar, em muito, a adequação das regras discutidas. Afinal, o artigo 19 do MCI é válido para todos os provedores de aplicações que recebem publicações de terceiros – e não apenas redes sociais, que são ativas em relação a tais conteúdos. Neste aspecto, há uma falta de consenso na Suprema Corte sobre a extensão da aplicação da regra em debate nos recursos extraordinários em análise. Trata-se de um ponto nevrálgico da questão, uma vez que decretar a inconstitucionalidade do artigo 19 para todos os provedores de aplicação geraria consequências trágicas para uma extensa gama de atores que operam serviços como intermediários não ativos em relação a conteúdos de terceiros, numa dinâmica diversa daquela que legitimamente preocupa hoje o Supremo Tribunal Federal.
Apesar de não traçar todas as diferenciações necessárias, o voto do ministro Barroso avança ao excluir as plataformas de comércio digital (os “marketplaces”) da mudança de regime de obrigações e responsabilidade que seu voto propõe. Esta diferenciação entre plataformas de redes sociais e de comércio digital considera a complexidade de atores que atuam como intermediários na Internet, contemplados na definição de “provedores de aplicações” do MCI. A distinção é um esforço importante para equilibrar as consequências do julgamento sobre o conjunto do ecossistema, e o STF poderia ir além para restringir sua aplicação as redes sociais, como já estabelece o enunciado do recurso extraordinário em tela.
Reiteramos assim nosso posicionamento, expresso em notas anteriores, sobre o julgamento em curso: é necessário que o Congresso Nacional retome a tramitação do Projeto de Lei 2630/2020, que vote e aprove-o. O projeto acumula, a partir do debate público e democrático, um conjunto de instrumentos e regras para dar tratamento ao quadro de questões abordadas agora pelo STF.
Por fim, reforçamos nossa defesa para que o STF reconheça a constitucionalidade do artigo 19 do MCI em uma abordagem de interpretação conforme à Constituição que estabeleça (i) a responsabilidade civil das redes sociais e ferramentas de busca por conteúdos promovidos a partir de contratação de ferramentas pagas de ampliação de alcance ou direcionamento de conteúdos, (ii) obrigações de transparência sobre moderação de conteúdo e canais de comunicação com usuário para garantia de devido processo em tais operações; e, (iii) por meio de recomendação ao Congresso Nacional, deveres de mitigação dos riscos sistêmicos aos direitos fundamentais resultantes do modelo de negócios de tais empresas, como já expressamos por meio de nota pública.
1 COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Contribuições da CDR à audiência Pública do STF que pretende julgar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. 28 mar. 2023. Disponível em https://direitosnarede.org.br/2023/03/28/contribuicoes-cdr-audiencia-publica-stf-constitucionalidade-artigo-19-mci/.
2 COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Coalizão Direitos na Rede manifesta desacordo com os primeiros votos emitidos no julgamento pelo STF da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. 18 dez. 2024. https://direitosnarede.org.br/2024/12/18/cdr-manifesta-desacordo-com-os-primeiros-votos-julgamento-stf-artigo-19-do-mci/
3 COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Coalizão Direitos na Rede manifesta desacordo com os primeiros votos emitidos no julgamento pelo STF da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. 18 dez. 2024. https://direitosnarede.org.br/2024/12/18/cdr-manifesta-desacordo-com-os-primeiros-votos-julgamento-stf-artigo-19-do-mci/
Brasília, 20 de dezembro de 2024
Coalizão Direitos na Rede