A governança da Internet é um processo contínuo, complexo e em constante disputa. Se entre o final dos anos 1990 e início dos 2000 a governança da Internet parecia um exemplo típico de tomada de poder do setor privado sobre assuntos da política global, com o crescente impacto comercial e político da Internet, sua importância aumentou ao longo do tempo [1]. Pouco a pouco sua governança evoluiu para um arranjo composto por atores públicos e privados interagindo em diferentes iniciativas e espaços multissetoriais, uma tentativa de mitigar a distribuição desigual dos direitos na rede e dos benefícios políticos, sociais e econômicos da transformação digital. Devido a essa trajetória histórica, da qual todos os setores fazem parte, é preciso expor as situações em que os princípios básicos da governança da Internet são violentamente infringidos.
O Fórum da Internet no Brasil (FIB), promovido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e organizado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br (NIC.br), tem se consolidado como um importante espaço para fortalecer a garantia da inovação, a segurança e a formulação de diretrizes para o desenvolvimento da Internet, sempre tendo em vista as constantes mudanças tecnológicas e a proteção dos direitos humanos. Ao longo dos últimos quatorze anos, o FIB acolheu não apenas o setor governamental, empresarial, comunidade científica e tecnológica, e terceiro setor, mas também incorporou de modo transversal representantes de diversas regiões do Brasil, classes, gêneros, sexualidades, raças, etnias, enfim portadores de múltiplos marcadores de diferença e interseccionalidades.
Por esse motivo o grupo de trabalho de Acesso à Internet da Coalizão Direitos na Rede (CDR) vem mostrar sua consternação, insatisfação e desacordo à forma de organização e ao conteúdo da mesa “Fair Share e o Setor de Telecomunicações: desafios e perspectivas do compartilhamento de custos para a expansão das redes” [2], apresentada no dia 24 de maio, último dia do FIB14 em Curitiba (PR). É preciso destacar de antemão que valorizamos a participação do setor empresarial e de agentes governamentais em espaços multissetoriais, que promovem o diálogo participativo, transparente e democrático. São raros os momentos em que representantes da sociedade, técnicos e pesquisadores podem discutir de modo horizontal com esses atores. Espaços como o FIB são fundamentais para que essa conversa ocorra de forma dialógica. No entanto, o que presenciamos nessa mesa de debate organizada pelo Legal Grounds Institute, foi desrespeito, truculência e silenciamento.
Em primeiro lugar, a organização Legal Grounds Institute dispunha de 1h30min para trazer ao público os consensos e dissensos, argumentos e contra-argumentos sobre como a taxa de rede (fair share) interfere nos direitos dos usuários, seu impacto sobre os princípios da governança da Internet, entre outras questões relacionadas ao tema. O problema é que, ao conceder 57min para as exposições dos painelistas e 19min para o debate entre eles, restou um tempo mínimo para perguntas e manifestações do público [3]. Ora, como um debate que se propõe a acolher dúvidas e incertezas, e informar a comunidade, pode relegar à própria comunidade de 1min a 30s de fala, com espaço para apenas seis participações presenciais? Com qual objetivo foi disponibilizada a participação online, via Youtube e X (ex Twitter), se as questões dos participantes foram ignoradas? Considerando os princípios de governança da Internet que guiam a organização do FIB, acreditamos que a mesa violou o caráter multissetorial, democrático, que valoriza a participação de todos. Foi essa a metodologia aprovada pela Comissão que selecionou os painéis deste FIB? Se foi, fica nítido que este este formato privilegiou apenas os painelistas em detrimento da participação da sociedade, uma das principais características do FIB construídas ao longo de todos esses anos.
Segundo, gostaríamos de expor a gravidade da postura adotada pelo presidente da Anatel, Carlos Baigorri. Ao se dirigir ao público, afirmou que o debate sobre a taxa de rede (fair share) é “permeado de narrativas de mentiras” e por “desinformação”, desrespeitando a capacidade do terceiro setor, comunidade técnica e outros atores ali presentes de produzir conhecimento, fazer ciência, desenvolver tecnologias e contribuir com diferentes saberes, sejam eles institucionalizados ou não. Como se não bastasse isso, o presidente da Anatel cometeu uma violência de gênero ao se dirigir à representante da comunidade técnica sem mencioná-la pelo nome, além de expor sua discordância de maneira inapropriada. Ainda cabe observar que, durante sua apresentação, Carlos Baigorri se auto-afirmou técnico e servidor público, solicitando que o debate fosse feito sobre fatos e dados, sendo que ele mesmo não contribuiu com nenhum argumento substancial. O fato de que o presidente da agência se retirar da mesa após sua manifestação demonstrou sua intenção antidemocrática. A agência tem defendido publicamente sua capacidade de assumir as competências regulatórias sobre as plataformas, os provedores de conteúdo [4]. Quando o presidente da Anatel se apresenta de maneira truculenta e desrespeitosa em uma discussão sobre as empresas que provém conteúdos, sem mostrar argumentos consistentes com seu discurso, cabe duvidar se a agência é de fato o espaço e a instituição legítima para alcançar democraticamente a cooperação e o consenso que a governança da Internet demanda.
A Coalizão Direitos na Rede também acredita que o formato da mesa teve um efeito prejudicial à troca de perspectivas e ao aprofundamento do tema da taxa de rede e da sustentabilidade das infraestruturas. Perguntas sobre como o modelo pode ferir os art.3 e art.9 do Marco Civil da Internet, como a privacidade seria preservada ou como os chamados “usuários massivos” seriam identificados, apenas para citar algumas, foram ignoradas. Além de uma manifestação pacífica e visual sobre a campanha #LiberaMinhaNet, as organizações que compõem a CDR estavam preparadas para aprofundar o debate sobre neutralidade de rede, um dos princípios e direitos que serão violados, caso o modelo de taxa de rede seja implementado.
Pelo exposto acima e diante das acusações feitas pelo presidente da Anatel, condenamos ações que abalem os principais pilares da governança da Internet, e solicitamos que os questionamentos aqui colocados sejam considerados pela organização do FIB14 e apreciados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil.
[1] RADU, Roxana. Oxford: Oxford University Press, 2019.
[2] Descrição e composição da mesa disponível em: https://forumdainternet.cgi.br/agenda/3038
[3] O painel pode ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4DnvhnBio_k&list=PLQq8-9yVHyOYZkTRB-bLufV676htW3zs-&index=28
[4] Ver: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/presidente-da-anatel-defende-agencia-como-orgao-regulador-das-plataformas-digitais