Mudanças na Lei Eleitoral sobre o digital precisam respeitar direitos e avançar em transparência

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) – coletivo que reúne mais de 50 entidades da sociedade civil e organizações acadêmicas que trabalham em defesa dos direitos digitais – vem a público contribuir com o debate aberto sobre reformas na legislação eleitoral, iniciado na Câmara dos Deputados perante o Grupo de Trabalho coordenado pela Deputada Dani Cunha (UNIÃO/RJ) e relatado pelo Deputado Rubens Pereira (PT/MA).

Sumário Executivo

A Coalizão compreende a urgência para o aprimoramento da legislação eleitoral, em especial em face das mudanças tecnológicas, mas apesar da urgência, clama pela abertura de espaços para aprofundamento do debate no Grupo de Trabalho da Minirreforma, para que todas as partes possam contribuir com o processo de maneira ativa.

A Coalizão acredita que seja possível, para o pleito de 2024, alterações nos seguintes temas: (i) o enfrentamento à violência política;  (ii) transparência e compromisso de plataformas; e (iii) proteção de dados pessoais.

No âmbito do enfrentamento a violência política, sugere entre outras coisas:

  • Ampliação no escopo de pessoas protegidas pela Lei de Violência Política;
  • Aprimoramentos nos procedimentos para enfrentar o crime de violência política, inclusive permitindo a aplicação de medidas protetivas;
  • Inclusão de medidas de responsabilização de partidos.

Já no tema de transparência e compromisso de plataformas:

  • Criação de uma biblioteca pública de Propaganda eleitoral permitindo melhor acesso à informação;
  • Publicação antecipada de regras e políticas das plataformas para o período eleitoral;
  • O diálogo das plataformas com a Justiça Eleitoral deve ser obrigatório a partir de 2024, seja através de termos de cooperação ou outros mecanismos similares.

Por fim, no tema de proteção de dados pessoais a Coalizão ressalta que a importância da Lei Geral de Proteção de Dados e os riscos gerados a partir de segmentação inadequada realizada a partir de dados sensíveis.

1. Premissas

A Coalizão compreende a urgência pelo contínuo aprimoramento da legislação eleitoral, em especial em face das mudanças tecnológicas. Sabemos que não é mais possível traçar uma

linha nítida entre o que é ou não digital nos processos eleitorais no Brasil e é com espírito colaborativo e de defesa de direitos humanos que esta rede de organizações vem contribuindo com o debate de temas eleitorais e digitais, como o faz, por exemplo,  nas discussões do novo Código Eleitoral, desde 2021.

A urgência e o prazo exíguo para a aprovação de matéria eleitoral para o pleito de 2024, no entanto, não podem servir de motivo para tramitações atropeladas de propostas, impossibilitando ou limitando a participação efetiva de entidades representativas da sociedade civil. Nesse sentido, a Coalizão Direitos na Rede clama pela abertura de espaços para aprofundamento do debate no Grupo de Trabalho da Minirreforma, para que todas as partes possam contribuir com o processo de maneira ativa.

Em 2023, nossas preocupações continuam focadas nas regras, que podem ser destinadas às campanhas, às plataformas digitais e às cidadãs e aos cidadãos, de uso da internet para propaganda e discussões eleitorais.

Para as campanhas oficiais, defendemos regras objetivas e transparência no exercício da propaganda política. Nesse sentido, são essenciais aquelas que visam a proteção de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, incluindo também regras para mitigar a violência política contra grupos sub-representados. A violência política é um obstáculo enorme ao livre exercício de direitos políticos básicos, ceifando a expressão de diversas candidatas e candidatos na rede, além de comunicadores, jornalistas e ativistas.  Para cidadãs e cidadãos, defendemos a proteção de seus direitos de liberdade de expressão, de acesso à informação, privacidade e proteção de dados e participação política. Para as plataformas, acreditamos na atribuição de responsabilidades por seus comportamentos e atuações estruturais – não sobre o conteúdo gerado pelos seus usuários. A elas, defendemos que sejam ampliadas responsabilidades de transparência e compromisso democrático, como o de cooperar ativamente com a Justiça Eleitoral.

Mesmo que haja pouco tempo hábil para a discussão desta reforma eleitoral, a Coalizão Direitos na Rede entende que existem pontos possíveis de serem ajustados em nosso sistema já para 2024, nos temas de (i) enfrentamento à violência política;  (ii) transparência e compromisso de plataformas; e (iii) proteção de dados pessoais.

2. Diretrizes e pontos relevantes

Enfrentamento à violência políticaA promulgação da Lei de Violência Política, em 2021, representaram um avanço para o enfrentamento da violência sofrida por mulheres que buscam adentrar à política institucional. No entanto, dois anos após a sua entrada em vigor, identificamos pontos a serem acrescentados e aprimorados, com intuito de frear essas agressões, que atingem as mulheres de maneira desproporcional, tornam o ambiente político mais hostil, e têm o

efeito de minar a participação democrática de determinados grupos. O tema é urgente e a reforma eleitoral é uma janela de oportunidade para continuar a abordar essa questão premente, a partir dos seguintes pontos abaixo.  

Ampliação no escopo de pessoas protegidas pela Lei de Violência Política

Em primeiro lugar é necessário refletir sobre o escopo do crime de violência política com especial atenção aos grupos que por ele são protegidos. A Coalizão Direitos na Rede entende como um equívoco limitar sua aplicabilidade a candidatas a cargos eletivos ou detentoras de mandatos, sem mencionar outros grupos sub-representados e atingidos que também sofrem violências semelhantes no âmbito do período eleitoral.

É o caso, por exemplo, de jornalistas, comunicadoras que cobrem o pleito, além de ativistas políticas​. É, portanto, fundamental, que a reforma amplie o escopo de tipificação da violência, para que estejam cobertas pessoas  que, a despeito de não possuírem intenções de ingressar à política institucional, também estão expostas a agressões durante campanhas, sofrendo do entorno violento instaurado nesse período. Proteger de violência política online as jornalistas e comunicadoras na sua condição de mulher, de pessoas negras ou de outros marcadores sociais é também tarefa fundamental para proteger o espaço democrático.

Além disso, é necessário que a Lei de Violência Política seja aprimorada também de maneira a ampliar seu leque de proteção em relação a outros grupos sub-representados. O texto tal como foi concebido refere–se ao “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, utilizando o critério de “sexo” para condicionar sua aplicação. No entanto, o uso do termo é limitante e potencialmente excludente a outros grupos sub-representados, cuja vulnerabilização é instrumento para desestimular e impedir sua participação em espaços de poder. É o caso da marginalização ​ ​por razõe​s de origem, etnia, identidade de gênero, orientação sexual, cor, idade, religiosidade e deficiência. ​A atual redação ignora, por exemplo, agressões​ ​contra pessoas trans, alvos significativos da violência política direcionada às candidaturas. Recomenda-se, portanto, que a lei se refira a discriminações por gênero, de maneira a incluir as múltiplas identidades de gênero.

Aprimoramentos nos procedimentos para enfrentar o crime de violência política, inclusive permitindo a aplicação de medidas protetivas.Tal qual como diagnosticado no relatório do projeto MonitorA, realizado pelo InternetLab, a revista Azmina e o Núcleo Jornalismo, uma das maiores questões relacionadas à efetividade da Lei de Violência Política é que “ainda que as vítimas tenham denunciado as eventuais violências sofridas no período eleitoral de 2022, nenhuma delas terá efetivamente o amparo legal trazido pela Lei 14.192/21, pois o procedimento atual não é célere o suficiente para

assegurá-lo”. São urgentes, portanto, ajustes processuais que permitam maior acesso à Justiça às vítimas destes tipos de abuso.

Neste tema, é de se notar que a legislação em vigor não prevê medidas protetivas ou hipóteses de proteção às vítimas no curso do período eleitoral, quando as mulheres envolvidas com o pleito estão em destaque e mais suscetíveis a atos de violência. Diante da ausência de mecanismos que salvaguardem sua atuação, ficam expostas a riscos a sua integridade física e psíquica até a chegada de uma decisão de mérito pelo poder judiciário competente. Nesse sentido, é também fundamental que a lei inclua medidas para proteção dessas mulheres, sejam políticas, candidatas ou jornalistas, à luz de medidas semelhantes previstas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que estabelecem hipóteses de proibição de determinadas condutas, como a aproximação ou contato com a ofendida (art. 22 da Lei nº 11.340/2006).

Inclusão de medidas de responsabilização de partidos

Por fim, ainda no âmbito da discussão sobre o enfrentamento à violência política, defendemos o acréscimo de dispositivos de responsabilização de partidos políticos e candidaturas, quando tais agentes se utilizem de violência política como estratégia de campanha. É comum que agressões a mulheres – sejam insultos ou ataques – venham de pessoas que concorrem a cargos eletivos ou detêm cargo público. Para coibir essas práticas, a legislação deve incluir hipóteses de responsabilização não-penal, como multas ou diminuição de acesso aos recursos públicos destinados a campanhas eleitorais de partidos coniventes com campanhas de violência e ataque contra grupos sub-representados.

Transparência como regra transversal, diálogo como obrigação

Obrigações de transparência e cooperação voltadas às plataformas digitais e aos candidatos, partidos e federações são fundamentais para garantir a integridade democrática do pleito no âmbito digital. Por esse motivo, a transparência deve ser considerada a regra, com exceções específicas, explícitas e justificadas, e deve ser considerada de forma transversal em toda a proposta de minirreforma. Ao mesmo tempo, o diálogo e a cooperação com a Justiça Eleitoral devem ser considerados requisitos básicos para empresas de tecnologia que se propõe a intermediar o debate eleitoral no Brasil. 

Propaganda eleitoral, prestação de contas e acesso à informação

É fundamental que a propaganda eleitoral na internet seja regida por regras que assegurem critérios mínimos de transparência e prestação de contas que joguem luz às maneiras como tecnologias digitais estão sendo utilizadas por candidaturas. Entendemos que é fundamental que empresas que forneçam propaganda eleitoral paga disponibilizem meios para acessar sua autoria, informações sobre financiadore​s, por quanto tempo ficará

disponível, quais critérios de segmentação foram utilizados para disseminação na plataforma e valor pago.

Mas como isso deve acontecer? A Coalizão Direitos na Rede defende a ampliação das obrigações para plataformas digitais construírem bibliotecas de anúncios políticos mais detalhadas, mas não nos limitamos a essa reivindicação. Defendemos um sistema público atualizado continuamente que permita acesso aberto a dados interoperáveis de todas as publicidades contratadas por campanhas eleitorais perante empresas de tecnologia na rede, idealmente administrado pela Justiça Eleitoral, enquanto meio de prestação de contas. Um sistema como esse permitiria não só o controle dos anúncios contratados perante esta ou aquela grande plataforma, mas a supervisão e fiscalização de outras modalidades futuras de publicidade.

Garantir o acesso às informações de publicidade e seus conteúdos é basilar para a promoção do ambiente digital como espaço de disputa política saudável, que permite a identificação rápida de conteúdos desinformativos, de violência política e de discurso de ódio.

Com relação à publicidade institucional, regulada pelo Art. 73, inciso VI, alínea b do atual código eleitoral, não obstante a importância do espírito da norma (evitar uso da máquina pública para promover um ou outro candidato), apontamos que sua aplicação tem levado à remoção de conteúdos e dados de interesse público nos três meses que antecedem o pleito eleitoral, prejudicando o pleno acesso à informação e debate público. Diante disso, ressaltamos que devem ser criados não apenas instrumentos de transparência sobre a remoção de informação dos canais oficiais dos órgãos públicos, como também melhor definição de critérios que sirvam a orientar servidores sobre a remoção apenas de conteúdos que promovam agentes públicos, sem que as informações sobre as políticas públicas e de Estado fiquem inacessíveis. 

Moderação de conteúdo e liberdade de expressão

Um ponto central a ser considerado é a garantia da liberdade de expressão das campanhas, de seus apoiadores e dos cidadãos durante o período eleitoral, em equilíbrio com seus limites. A Coalizão Direitos na Rede entende este ponto como fundamental na promoção da internet como espaço do exercício da cidadania, apto para receber o debate eleitoral na sua ampla diversidade. Assim, regras que incidem sobre o tema precisam ser examinadas a fundo, considerados os riscos que podem ter na promoção de direitos e liberdade ou para amplificar distorções e silenciar vozes.

Neste ponto, se faz necessária a preservação do modelo de responsabilização de intermediários do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) como base. Segundo a legislação, os danos decorrentes do que é postado pelos usuários apenas serão de responsabilidade das empresas caso elas recebam ordem judicial para remover conteúdo ilícito e permaneçam inertes. Tal lógica busca assegurar que as empresas não sejam

incentivadas a agir exageradamente contra conteúdos de usuários, coibindo inclusive a expressão legítima. Este modelo é estruturante para que cidadãos e candidatos possam se manifestar livremente e, ainda, para que sejam responsabilizados pelo que falam na medida de seu dano. A Coalizão Direitos na Rede acredita que a responsabilização das plataformas digitais deve estar atrelada muito mais ao comportamento das empresas do que ao conteúdo gerado por terceiros, como é o caso da implementação de regras de transparência ampla para seus serviços.

É por estas razões que defendemos que as plataformas divulguem, com antecedência e de forma clara e em português, seus termos de uso aplicáveis a conteúdos de cunho eleitoral e às candidaturas. A antecedência garante a utilização informada dos serviços e protege contra abusos corporativos. A partir dessa primeira divulgação, toda alteração dos termos, regras e políticas que servem de apoio ao processo eleitoral deve ter ampla divulgação, garantindo acesso às modificações e suas justificativas. As plataformas devem poder alterar suas regras para se adequarem a realidades sociais e tecnológicas que mudam em espaços curtos de tempo, no entanto, as mudanças devem ser feitas de forma transparente.

A legislação não deve legitimar políticas das plataformas, nem engessá-las, mas sim assegurar a transparência e garantias procedimentais para que todos os usuários possam se defender de abusos e arbítrios.

Diálogo com a Justiça Eleitoral

A experiência dos últimos três pleitos eleitorais no Brasil mostrou que o diálogo entre as plataformas digitais e a Justiça Eleitoral é indispensável para a manutenção da integridade do processo eleitoral e de direitos humanos. Nesse contexto, ganharam destaque os termos de cooperação assinados entre as empresas e o Tribunal Superior Eleitoral, nos quais são estabelecidas iniciativas educacionais e de design dos serviços das plataformas, diretrizes e obrigações mínimas de mecanismos de transparência, de acesso à informação e promoção de fontes oficiais, de mecanismos para denúncias e tratamento de conteúdos desinformativos, de discurso de ódio e de violência política, além de protocolos para crises.

A Coalizão Direitos na Rede defende que este diálogo se torne obrigatório a partir de 2024. É necessário que tais instrumentos continuem a ser aprimorados, tanto em conteúdo quanto em forma.

O diálogo é obrigatório para firmar um termo de compromisso, uma espécie de “código de conduta” ou instrumento de corregulação. Este diálogo deve trazer não só os partidos políticos, mas também a sociedade civil. A legislação deve indicar que a Justiça Eleitoral emita diretrizes para tais termos de compromisso, que sejam estipuladas a partir de consulta pública com a sociedade na formulação e fiscalização desses instrumentos, garantindo o princípio do controle social.

Quanto à forma, fica evidente a necessidade de que estejam devidamente regulados, para que sua existência não esteja condicionada apenas ao interesse da presidência do Tribunal. Sobre o conteúdo, é preciso garantir que os termos de cooperação contenham medidas específicas a serem adotadas, sem termos genéricos ou meras traduções de termos internacionais que pouco se relacionam com o contexto nacional. Além disso, os acordos devem explicitar medidas eficazes, adequadas para cenário brasileiro, mensuráveis e que sejam passíveis de cumprimento e aplicação pelas partes. 

Proteção de dados pessoais

No que se refere ao uso de dados pessoais para fins de direcionamento de propaganda eleitoral em plataformas digitais e aplicativos de mensageria instantânea, a Coalizão Direitos na Rede ressalta a importância da aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados na seara eleitoral (Lei nº 13.709/2018) e a não criação de regras que possam dar margem a abusos ou tratamentos inadequados de dados feitos por partidos, candidatos e federações. Um exemplo de abuso é a realização de atividades de segmentação inadequadas a partir de dados sensíveis. Nesse sentido, é importante que a proposta avance na proteção do cidadão em face do microdirecionamento abusivo de publicidade política.

Por fim, é fundamental que a aplicação das regras de proteção de dados pessoais na seara eleitoral sejam aplicadas, fiscalizadas e regulamentadas pela Justiça Eleitoral, em constante canal de diálogo e consulta com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Conclusão

A partir dos pontos mencionados acima, a Coalizão Direitos na Rede visa contribuir para que o texto da proposta de minirreforma eleitoral compreenda e abarque os principais aspectos de funcionamento da internet e das tecnologias da informação, trazendo subsídios para que o texto proporcione tanto segurança jurídica quanto a proteção de direitos fundamentais no uso das redes.

Apesar da urgência e do prazo exíguo, reforçamos a necessidade de aprofundamento de debates e de participação da sociedade civil no processo de discussão e elaboração da proposta. Nesse sentido, nos colocamos à disposição do relator, Deputado Rubens Pereira, da coordenadora, Deputada Dani Cunha e dos demais membros do GT da Minirreforma Eleitoral para dialogar sobre os pontos acima referidos.

Brasília, 30 de agosto de 2023

Respeitosamente,

Coalizão Direitos na Rede