A maior reforma eleitoral dos últimos anos não pode ameaçar os direitos dos usuários da Internet no Brasil

Nota técnica da Coalizão Direitos na Rede sobre o Projeto de Lei da Reforma Eleitoral (PLP nº 112/2021)

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) – coletivo que reúne 48 entidades da sociedade civil e organizações acadêmicas que trabalham em defesa dos direitos digitais – vem a público chamar a atenção dos parlamentares sobre o Projeto de Lei Complementar Nº112/2021, que institui o Código Eleitoral no contexto da Reforma eleitoral de 2021. A proposta é fruto das discussões do Grupo de Trabalho da Reforma Eleitoral, criado no âmbito da Câmara dos Deputados e cujos trabalhos são liderados pelo coordenador, Dep. Jonathan de Jesus (Republicanos/RR), e a relatora, deputada Margarete Coelho (PP/PI).

O presente posicionamento é uma sequência de nossa primeira nota pública sobre a reforma da legislação eleitoral, formulada em 30 de junho de 2021. Nesta nota técnica, as entidades da Coalizão pretendem apresentar pontos adicionais a respeito do processo de elaboração e aprovação do texto, questões de forma desta reforma eleitoral e pontos de mérito sobre o tema dos direitos digitais que estão presentes no texto. 

  1. Comentários preliminares:

A Coalizão Direitos na Rede reconhece que os temas tratados no projeto de lei em questão são relevantes e urgentes. São necessárias atualizações do texto da legislação eleitoral diante de pontos que são defasados, vagos ou incompletos. No entanto, em um momento inicial, é preocupante que esta verdadeira “megarreforma” seja realizada em ritmo açodado, impróprio para o tamanho das mudanças almejadas. Mesmo que o Grupo de Trabalho tenha realizado alguns debates no ano,  a falta de formalização do texto que será apreciado em plenário para a discussão de emendas ou substitutivos e a ausência de publicização do resultado destes debates alijam a devida participação da sociedade civil brasileira em um debate que a concerne. Que fique claro, esta reforma eleitoral proposta é a maior desde a redemocratização. São mais de 55 anos de debate legislativo sendo substituídos em plena pandemia.

Este é um problema que, infelizmente, tem se tornado recorrente no parlamento brasileiro. Desde o início da pandemia, entidades da sociedade civil e academia têm reiterado uma profunda preocupação com o ritmo acelerado de tramitação de propostas legislativas que, se aprovadas, podem representar mudanças importantes para a  democracia brasileira. Desde março de 2020, com a criação do regime de tramitação de propostas para a pandemia e, mesmo em 2021, com a retomada do funcionamento das comissões, o acompanhamento e supervisão dos trabalhos do Congresso por parte da sociedade tem sido cada vez mais dificultado. Além da introdução de ambientes menos institucionalizados de discussão de projetos de lei – como os Grupos de Trabalho -, nem sempre os temas são objeto de audiências e consultas públicas e parte importante dos projetos acabam sendo votados sem participação social. No caso da Reforma Eleitoral, alguns dos problemas presentes foram os prazos exíguos de tramitação da proposta e análise de versões não oficiais, ausência de publicidade de um texto, bem como a multiplicidade de versões antes do protocolo do texto oficial em discussão.  

Um projeto de lei que representa a maior reforma eleitoral das últimas décadas não deveria ser debatido a toque de caixa. Reforçamos a recomendação já formulada anteriormente de que é necessária uma ampliação da participação de todos os setores da sociedade e do parlamento. Isto significa mais tempo para a discussão e um processo legislativo mais ritmado, que consiga se aprofundar em uma análise ampla e técnica do texto e de seus impactos, fato que não poderá ocorrer caso o projeto seja votado semanas após a sua apresentação formal.

  1. Questões de forma:  proposta engessará a regulação de temas digitais, o que é inadequado

Considerando a análise do PL, a proposta torna mais rígida a forma de elaborar regras eleitorais, o que pode trazer problemas quando o assunto é regular a tecnologia, considerando o seu dinamismo. Da forma como está, o novo Código seria inteiramente aprovado por Lei Complementar, o que dificulta excessivamente eventuais reformas de regras sobre propaganda na Internet, por exemplo.

O problema do engessamento do ordenamento jurídico, que o torna potencialmente obsoleto no contexto da Internet, é potencializado com o afastamento da competência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para produzir regulamentações adaptadas aos novos momentos e tecnologias na propaganda. Um exemplo da importância do poder regulamentar do TSE na seara do ecossistema digital é a proibição para “disparos em massa” que ocorreu em 2019 a partir de regulamentação própria, e não de inovação em lei. Restringir as regras eleitorais aos problemas de hoje pode significar a elaboração de um Código datado e impossibilitado de resolver de forma ágil os dilemas do futuro que certamente aparecerão com o desenvolvimento tecnológico.

  1. Questões de conteúdo: direitos digitais em risco

Moderação de conteúdos e liberdade de expressão 

Um dos principais pontos tratados pela nova reforma é a garantia (e os limites) da liberdade de expressão das campanhas, seus apoiadores e dos cidadãos durante o período eleitoral. A Coalizão Direitos na Rede entende este ponto como fundamental na promoção da Internet como um espaço democrático e apto para receber o debate eleitoral na sua diversidade. Assim, as regras que incidem sobre este tema precisam ser examinadas com lupa, consideradas as consequências que podem ter para assegurar direitos e liberdades ou para amplificar distorções e silenciar vozes.

Neste ponto, se faz necessária a preservação do modelo do Marco Civil da Internet (Lei no. 12.965/2014) sobre a responsabilização de aplicações de Internet pelos danos decorrentes do que é postado pelos seus usuários. Segundo a lei, tais danos apenas são de responsabilidade das empresas de Internet caso elas recebam uma ordem judicial para remover o conteúdo ilícito e permaneçam inertes, o que assegura que tais empresas não sejam incentivadas a agir exageradamente contra a expressão de seus usuários. Mesmo que o novo Código pareça já ter abarcado aspectos deste regime, a Coalizão reitera que este modelo é estruturante para que usuários e candidatos possam se manifestar livremente e, ainda, para que eles sejam responsabilizados pelo que falam na medida de seu dano.

De fato, a proposta de novo Código Eleitoral inova não na mudança do modelo de responsabilização por danos gerados por usuários, mas sim na criação de regras relativas à atividade autônoma de “moderação de conteúdos” das chamadas “plataformas de Internet”. Neste caso, o Código propõe que as plataformas não só não devem ser responsabilizadas pelo que dizem seus usuários na ausência de uma ordem da Justiça, mas que elas só estão autorizadas a remover ou bloquear perfis de candidatas e candidatos até que recebam uma ordem judicial ou na aplicação de suas regras, mas seguindo determinadas condições. Entre estas condições está a obrigação de que “as plataformas de mídias sociais e os aplicativos de mensageria privada devem publicar, em língua nacional, de forma clara, precisa e acessível as políticas e regras de moderação de conteúdo e comportamento aplicáveis ao processo eleitoral” até dia 1º de junho do ano das eleições. A proposta ainda cria uma via rápida para que a Justiça Eleitoral possa ordenar que se restaurem publicações de candidaturas removidas “em desacordo com a legislação eleitoral” pelas plataformas em até 24 horas.

Medidas de transparência que efetivamente facilitem a compreensão do usuário a respeito dos termos de uso ou padrões da comunidade são sempre bem-vindas. Ainda é preciso avançar muito nessa área, ainda mais levando em consideração que algumas políticas dessas empresas ainda permanecem sem tradução no Brasil. A discussão não é simples: ao mesmo tempo que transparência é fundamental, obrigar plataformas a publicar essas diretrizes de maneira muito específica pode significar que os usuários terão acesso ao manual de como se esquivar da moderação, o que não é adequado. Isso já acontece em menor escala hoje, como no caso de grupos anti-vacina do Facebook que se comunicam por códigos para evitar ações de moderação, por exemplo. 

Assim, a proposta não enfrenta a questão da “moderação de conteúdos” de frente, pois mesmo que busque controlar o poder excessivo dos gigantes da tecnologia sobre a expressão de seus usuários, ela está apenas focada na proteção de perfis de candidatas e candidatos, buscando garantir que eles não sofrerão arbitrariedades e que poderão ter suas publicações restauradas. Assim, o texto falha em entender que controlar este poder das plataformas consiste em reconhecer que a elaboração e aplicação de regras privadas por empresas de Internet em relação a seus usuários é tanto uma atividade necessária para a proteção de direitos humanos quanto para a obtenção de uma  Internet segura e funcional. Nesse sentido, apesar de representar uma atividade de risco em função do potencial de oferecer ameaça a direitos de todos usuários se conduzida de forma abusiva, a moderação de conteúdos é uma atividade necessária. A legislação não deve legitimar políticas das plataformas nem engessá-las exageradamente, mas sim assegurar a transparência e garantias procedimentais para que todos os usuários possam se defender de abusos e arbítrios.

Neste sentido, em primeiro lugar, a proposta precisa considerar que a Internet contempla uma multiplicidade de provedores de aplicações diferentes que não são os “gigantes da tecnologia” e que precisam ser tratados de acordo com suas especificidades. Ao criar regras que se destinam a atores dominantes do mercado de redes sociais, legisladores precisam criar exceções ou recortes por tamanho (como a porcentagem relativa à população brasileira de número de usuários) e finalidade (como o lucro) para que regras mais rígidas ou de adequação custosa não sejam carregadas por aqueles que sequer têm a capacidade de competirem com potências econômicas globais. Enciclopédias colaborativas, redes sem fins de lucro e pequenas empresas não devem possuir as mesmas obrigações de YouTube e Facebook, por exemplo.

Segundo, a blindagem de perfis de candidaturas que condiciona remoções de perfis a ordens da Justiça ou políticas previamente publicadas pode pretender proteger candidaturas de ações arbitrárias das plataformas, mas acaba por legitimar suas regras privadas sem o estabelecimento de deveres de transparência ou de garantias aos usuários, sendo eles candidatos ou não. Neste ponto, a proposta de Código deixa de construir mecanismos de comprometimento e supervisão do setor privado que permitam não só maior espaço para que partidos, candidaturas e a sociedade civil exponham suas preocupações, mas também ferramentas de sanção que coíbam abusos de tais empresas. Ao mesmo tempo, ao construir proteções a perfis de candidaturas, a lei pode acabar obrigando plataformas a hospedarem usuários que agem para contornar suas regras, o que pode, inclusive, promover desinformação. 

Identificação de usuários e políticas de nomes reais 

A proposta traz uma série de dispositivos que buscam criar mecanismos de identificação dos usuários de Internet que se proponham a fazer o debate político em plataformas de redes sociais. Apesar de ressalvar o uso de pseudônimos, encara o debate de responsabilização de usuários de maneira inadequada ao solicitar mais um mecanismo de pré-identificação para fins de reparação posterior de danos. Segundo o texto, qualquer “publicação gratuita de conteúdos políticos na Internet a partir de 1º de janeiro do ano eleitoral ou por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica e mensagem instantânea pressupõe a existência de pessoa natural, assim como a possibilidade de sua identificação ou, à falta dela, a indicação de e-mail ou outra forma de contato no próprio canal utilizado, que possibilite o recebimento de notificações sobre os conteúdos divulgados”. 

Primeiramente, a expressão “conteúdos políticos” traz enorme insegurança jurídica e margem para que esta regra seja aplicada de maneira discricionária – e possivelmente abusiva. Na ausência de parâmetros que definem se uma matéria jornalística ou uma produção humorística é “conteúdo político”, o texto é potencialmente aplicável a publicação de qualquer conteúdo na Internet.

Em segundo, a inadequação parte do fato de que já há um mecanismo na legislação brasileira que funciona para identificação de usuários de Internet para a responsabilização em face de ilícitos, trazido pelos artigos 13, 15, 22 e 23 do Marco Civil da Internet. Segundo o Marco Civil, todos os usuários de grandes aplicações de Internet no Brasil têm seus registros de acesso a aplicações de Internet guardados obrigatoriamente por seis meses, justamente para que eles possam ser responsabilizados – independente de usarem seus nomes reais ou pseudônimos em redes sociais. Em razão disso, não há necessidade de indicação de outros dados pelo usuário, até porque a aplicação utilizada por este usuário já coleta dados de seu acesso compulsoriamente.

A linguagem da proposta pode dar margem à restrição do uso de pseudônimos, o que não deve prosperar em razão do valor que eles possuem para o exercício da liberdade de expressão de grupos minoritários, pessoas sob ameaça ou sob risco de violência, mulheres alvo de violência online, dentre outros. Isto vem sendo reforçado reiteradamente por especialistas e organizações internacionais, como no relatório A/HRC/29/32 do Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas.

 Dispositivos neste sentido ameaçam a livre expressão de usuários, por  permitir algum nível de instrumentalização por parte de candidatos que tenham por objetivo silenciamento de vozes minoritárias durante o pleito eleitoral. Ainda, a construção proposta pela reforma é oposta ao entendimento do STF e STJ, para os quais a vedação constitucional ao anonimato implica na disponibilização de meios para que se possa chegar ao autor ou autora de uma determinada manifestação. Levando em consideração que, como visto acima, o MCI já é suficiente para garantir esses meios na Internet, os mecanismos criados pela reforma são desnecessários.

Proteção de dados e regulação da mensageria privada para fins eleitorais

Na parte de proteção de dados, a proposta acerta em compreender que deve prezar pela aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados na seara eleitoral, e não por criar regras que possam dar margem a abusos ou tratamentos inadequados de dados feitos por partidos, candidatos e coligações. Neste sentido, é fundamental que seja preservado o poder de aplicação, fiscalização e regulamentação da Justiça Eleitoral em relação a estes atores do sistema eleitoral, bem como criado canal de diálogo e consulta à Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Na compatibilização com a LGPD, ainda consideramos necessário aprofundar o debate sobre dispositivos que constam na proposta e que autorizam partidos a tratarem dados de seus filiados e apoiadores, bem como que regulam a segmentação de propaganda eleitoral a partir de dados pessoais. Nestes pontos, nossa preocupação é a de que a redação dê margem para usos de dados que não estão entre as expectativas legítimas dos cidadãos ou, ainda, para a realização de atividades de segmentação inadequadas a partir de dados sensíveis. Na visão da Coalizão Direitos na Rede, é importante que o novo Código avance para proteger os cidadãos em face do microdirecionamento abusivo de publicidade política feito a partir do uso de dados pessoais; para isso é importante reforçar a punição quando há violação dos direitos dos titulares de dados pessoais, cumulando novas sanções com as que já existem na LGPD.

Em relação à regulação de serviços de mensageria privada, o texto é equilibrado e também acerta em trazer questões de dados pessoais, visto que atividades abusivas já noticiadas amplamente pela imprensa nas eleições de 2018 basearam-se no disparo em massa de mensagens realizado a partir do tratamento indevido de dados pessoais. Entretanto, a seção ainda precisa de aperfeiçoamento, pois falha ao exigir mecanismo de “descadastramento” específico para os usuários que desejarem não mais receber mensagens de um determinado candidato ou partido sem clareza ou precisão.

Tal regra de “descadastramento” já consta na atual lei eleitoral, mas ela pode ser problemática. Como está redigida, a proposta dá margem para interpretação de que empresas que oferecem tais serviços monitorem mensagens de seus usuários para saber onde a campanha está ocorrendo. Alternativamente, pode acabar por incentivar o compartilhamento de links inseguros via aplicativo, o que acarreta problemas de segurança aos usuários. Esta vulnerabilidade poderia ser aproveitada por agentes maliciosos para conduzir o usuário, através de links externos fornecidos para esta finalidade, a golpes como os que ensejam a coleta ilegal de dados pessoais. 

Assim, mesmo que mecanismos de “descadastramento” podem ser uma ferramenta importante para dar controle aos usuários a respeito do conteúdo que recebem em suas mensagens, o novo Código não deve criar um dever genérico para sua adoção. Em lugar disso defendemos que a lei estabeleça claramente que este mecanismo deve ser seguro e de responsabilidade dos candidatos, partidos e coligações. Cidadãos devem poder se descadastrar a partir de uma simples resposta ao remetente.

Propaganda eleitoral e tecnologia

Quando aborda questões de propaganda eleitoral na Internet, a presente proposta de Código tem pontos que carecem de aperfeiçoamento, em especial para preservar usos legítimos de tecnologia por iniciativas cidadãs, proteger direitos e garantir a previsibilidade de aplicação das regras durante a campanha eleitoral na rede.

Primeiramente, a definição de “propaganda eleitoral” trazida pela proposta pode representar risco importante para a liberdade de expressão e precisa ser revista. Da forma como está no texto, define-se propaganda eleitoral como “todo ato de comunicação que, por qualquer meio de divulgação, tenha como objetivo convocar os cidadãos a votar a favor de ou contra determinado candidato ou partido político, ou a abster-se de manifestar preferência eleitoral” ressalvando algumas hipóteses restritas de promoção de debates e de discursos de políticos. Esta definição é relevante pois é ela que será utilizada para verificar se algo é ou não propaganda e, portanto, passível de determinadas proibições estipuladas pela lei (como a vedação à realização de propaganda política em sites de pessoas jurídicas). Assim, a definição que consta no texto impedirá, por exemplo, que organizações da sociedade civil se organizem para rechaçar propostas de determinado candidato consideradas problemáticas para causas e direitos que defendem, o que não deveria ser confundido com “propaganda eleitoral”. Desta maneira, a definição e suas consequências precisam de urgente revisão, para delimitar tais proibições aos casos problemáticos de fato, e não a expressões legítimas.

Em segundo lugar, a Coalizão Direitos na Rede reforça a recomendação de supressão do dispositivo que veda a veiculação de propaganda política ou eleitoral por intermédio do uso automatizado de perfis em mídias sociais, incluindo em seu entendimento os chamados “perfis robôs”. Tendo em vista a existência de um debate relevante sobre os limites da automação de contas que não está destrinchado no texto tal qual proposto, ressalta-se que apesar de existirem diversas atividades conduzidas por perfis automatizados que podem servir para manipular as funções das plataformas e impactar de maneira ilegítimas o debate público, também existem diversas circunstâncias em que o uso de ferramentas de automação é benéfico. Assim, a vedação absoluta ao uso de automação e “robôs” acaba por impedir a liberdade de expressão e, inclusive, proíbe o uso de robôs úteis como os  chatbots – robôs que auxiliam a prestar informações e vêm sendo utilizados  pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

Em terceiro, definições e conceitos propostos pelo projeto precisam ser mais precisos, sob pena de serem acionados judicialmente para constranger a expressão legítima de usuários da Internet. Este é o caso de termos como “meios publicitários enganosos”, “propaganda eleitoral negativa” e “desinformação”, por exemplo. 

Ainda, no que diz respeito à propaganda eleitoral paga na Internet, recomenda-se a conceituação mais precisa do que deve ser entendido por impulsionamento (que segue como a modalidade de propaganda paga permitida pela legislação, segundo a proposta), além do detalhamento de informações a serem disponibilizadas pelas plataformas que optarem por vender tais produtos publicitários para campanhas políticas. 

Em linha do que defende a Coalizão Direitos na Rede em debates sobre a regulação das plataformas de Internet, também é necessário expandir os requisitos de transparência em relação a anúncios políticos, o que passa pela sociedade ter acesso ao valor total gasto pelo candidato, partido ou coligação para realização de propaganda na Internet por meio de impulsionamento de conteúdo;  à identificação do responsável pela contratação do impulsionamento; ao tempo de veiculação; às características gerais da audiência contratada; e às técnicas e categorias de perfilamento utilizadas.

Violência política e promoção da participação política de grupos sub-representados

Defendemos com veemência que o Código seja revisado para abarcar de forma estrutural a questão do enfrentamento à violência política na Internet, configurada na realização de ataques sistemáticos à participação política de mulheres, pessoas negras, da população LGBTQIA+ e de outros grupos sub-representados.

Assim, em razão da ausência de menção ao tema da violência política no bojo do texto em comento, reitera-se a recomendação já feita, para que o tema seja endereçado transversalmente na proposta, sendo abordado desde a sua parte de princípios como também no estabelecimento de limites à expressão que ultrapasse a linha da violência e consista em ameaça à participação de tais grupos na esfera pública. 

Neste sentido, sugere-se que, na propaganda eleitoral, sejam vedadas mensagens discriminatórias, depreciativas ou que representem agressões (físicas, verbais, psicológicas ou sexuais) em face de grupos sub-representados ou marginalizados, seja em razão de sua origem, etnia, identidade de gênero, orientação sexual, cor, idade, religiosidade e deficiência. Casos como este devem ser punidos com rigor superior à proteção à honra deste ou daquele candidato, por representarem tutela da participação coletiva de populações as quais o sistema eleitoral brasileiro atual falha em representar adequadamente e em dar segurança à sua atuação política.

Condutas vedadas e abuso
A necessidade de aperfeiçoamento está também presente no trecho da proposta de Código que estabelece condutas vedadas para a Internet e hipóteses de abuso de poder ou uso indevido de meios de comunicação. A busca por tornar mais robusto e preciso o combate à manipulação do discurso público no âmbito eleitoral é necessária. Entretanto, o texto propõe substituir conceitos com certo grau de compreensão do Judiciário por regras novas, vagas e construídas sem um debate técnico aprofundado com a academia e a sociedade, o que representa um retrocesso para o enfrentamento das irregularidades em jogo e para a garantia de direitos aos usuários de Internet.

O ponto mais problemático desse trecho é o artigo que estabelece a “disseminação de desinformação” como conduta vedada e punível com multa. Em tese, ninguém defende a disseminação de desinformação, sobretudo durante a campanha eleitoral, mas na prática a proposta criará uma possibilidade vaga de censura de expressões críticas a políticos, a ser mobilizada no Judiciário.

O principal dos problemas reside na imprecisão técnica na elaboração do conceito de desinformação e em como ele será aplicado no Judiciário. Desta forma, ao invés de ser mecanismo para o combate da manipulação do pleito e consequente responsabilização, ele pode ser utilizado para ameaçar a liberdade de expressão. Utilizando os termos do texto, o que o Judiciário dirá que é “conteúdo evidentemente dotado de elementos inexatos, seja pela falta de correspondência fática ou pela inadequação do contexto, capaz de induzir os destinatários a uma equivocada concepção da realidade”, como estabelece o dispositivo?

Em segundo lugar, a introdução da “disseminação de desinformação” como conduta vedada é problemática por não guardar relação com outros pontos da proposta de Código. Deveria existir uma lógica na aplicação de tal conceito em relação a outros dispositivos do texto, mas não há. Em lugar disso, há a proibição de divulgação do termo “fato sabidamente inverídico”, que parece ser algo diferente da ideia de “disseminação de desinformação”.

Por fim, vale ressaltar que é salutar a tentativa de abarcar, na mesma seção, a disseminação de mensagens de ódio (arts. 480 e 489). No entanto, gostaríamos de chamar a atenção para a necessidade de aprimoramento dos artigos em questão para evitar eventuais dúvidas de interpretação e garantia de um necessário mecanismo para evitar a perpetuação de ataques políticos contra candidatos e candidatas em eleições vindouras. Nesse sentido, propomos a  inclusão do termo “ato de grave violência política em face a grupos politicamente sub-representados” no 489, §2º. Entendemos que essa alteração é suficiente e necessária ao enfrentamento à disseminação de conteúdo odioso na medida que possibilita a aplicação de multa aos casos graves.

Crimes eleitorais

O trecho que estabelece os crimes eleitorais também merece atenção, por trazer riscos à criminalização excessiva de usuários da Internet que possuam condutas banais ou exerçam expressão legítima.

Em um dos crimes eleitorais trazidos pela proposta, aquele que “divulgar ou compartilhar a partir do início do prazo para a realização das convenções partidárias, fatos que sabe inverídicos ou gravemente descontextualizados, com aptidão para exercer influência perante o eleitorado” será punido com 1 a 4 anos de reclusão, numa espécie de versão turbinada do já existente crime de divulgação de fatos sabidamente inverídicos na propaganda eleitoral.

A Coalizão Direitos na Rede considera essa expansão de tipificação penal para além da propaganda eleitoral inadequada por três motivos. Em primeiro lugar, criminalizar a divulgação de “fatos sabidamente inverídicos” ou “gravemente descontextualizados” por qualquer pessoa durante o período eleitoral significa que usuários comuns estarão à mercê da aplicação de termos vagos e subjetivos. Em segundo, porque o crime estabelece que essa divulgação já deve ser punida quando está “apta para exercer influência perante o eleitorado”, e não quando exerce essa influência de fato, adicionando ainda mais um elemento de subjetividade. Por fim, a majoração da pena em relação à aplicada hoje é desproporcional, em especial se considerados demais crimes que incidem sobre a expressão.

O projeto também traz um outro tipo criminal conectado com a disseminação de propaganda eleitoral, que torna crime “produzir, estruturar, oferecer, usar ou adquirir, ainda que gratuitamente, serviços ou banco de dados aptos a disseminar informação por quaisquer meios, fora das hipóteses e limites previstos na legislação eleitoral, independentemente do conteúdo das mensagens divulgadas ou que se pretende divulgar”. Neste caso a pena é ainda mais severa – de 2 a 4 anos de reclusão.

Este tipo merece ser suprimido ou totalmente reformulado. Da forma como está, ele estabelece uma criminalização inespecífica e severa para atividades tecnológicas que podem ser inofensivas ou cotidianas. Além disso, o tipo representa enorme desafio interpretativo, por sua vagueza . Desta forma, entendemos que o novo Código Eleitoral não pode criar um tipo penal que represente um cheque em branco para que tecnologias quaisquer sejam criminalizadas, como é o caso desta proposta.

Por fim, o novo Código Eleitoral apresenta inovação para abarcar um novo crime de “violência política contra mulheres”. Em linha com as manifestações da Coalizão Direitos na Rede sobre o tema nos últimos dois anos, nos posicionamos em favor da criação deste novo tipo penal, mas defendendo que ele contemple também a violência política contra pessoas negras e indígenas, LGBTQIA+ e em razão da procedência regional, como mencionado anteriormente nesta nota.

  1. Conclusão

A partir dos pontos expostos acima, a Coalizão Direitos na Rede visa contribuir para que o texto da reforma eleitoral compreenda e abarque os principais aspectos do funcionamento da Internet e das tecnologias da informação, trazendo subsídios para que o texto proporcione tanto segurança jurídica quanto proteção aos direitos fundamentais no uso da rede. Para tal, anexamos à presente nota técnica tabela com sugestões de redação em questões que são caras para as entidades que integram a CDR e para a preservação dos direitos dos usuários da Internet durante o processo eleitoral. 

Apesar da urgência da aprovação da proposta, entendemos ser necessário maior aprofundamento e discussão técnica sobre o texto final, sob pena de riscos importantes a direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a privacidade, se concretizarem no Parlamento. Nesse sentido, nos colocamos mais uma vez à disposição da relatora, Deputada Margarete Coelho, e do Congresso Nacional, para dialogar sobre os pontos acima referidos.

Respeitosamente,

Coalizão Direitos na Rede
Brasília, 09 de agosto de 2021

Baixe o PDF com os anexos das sugestões de redação da Coalizão Direitos na Rede ao texto do PLP nº 112/2021

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