O Congresso discute um projeto de lei velho, que coloca o Brasil em rota de colisão com a OCDE, e que aumenta enormemente o custo de governo digital
As entidades abaixo assinadas, representantes do setor privado, da sociedade civil e da comunidade acadêmica, vêm se manifestar sobre o PL 2224/21. O Projeto de Lei de API Dados Abertos (PL 2224/2021) dedica-se a um tema urgente: enfrentar a falta de investimentos em APIs de transparência ativa, solução técnica de interoperabilidade capaz de aumentar a disponibilidade de dados abertos.
Dados abertos são importantes para o setor privado, porque promovem o desenvolvimento econômico, e para sociedade civil, pois além de controle social são essenciais para o desenvolvimento social.
O Brasil sempre foi pioneiro em dados abertos, mas agora sabemos que precisamos ir além: mais do que abrir dados, precisamos que os dados abertos funcionem como ruas ou pontes, como infraestrutura, para o desenvolvimento econômico e social. O tema do projeto de lei vai nessa direção, e isso é excelente.
Mas o que o PL faz para investir em dados abertos? Aumenta a carga tributária, com uma péssima estratégia: cobra uma forma de “pedágio” para que empresas públicas prestem serviços de acesso e processamento de dados. A contrapartida? Criar serviços que sejam pagos, e que se mantenham pagos, no longo prazo. Isso deve ser impedido.
Por que dados abertos deveriam ser gratuitos? Porque dados abertos têm um enorme retorno sobre investimento. Dados abertos sustentam setores econômicos inteiros; dados abertos permitem o controle social e a identificação de carência de investimento; dados abertos são os principais vetores da transformação digital, permitindo que se enfrentem os abismos e exclusões digitais, que afetam predominantemente pessoas pobres, negras, moradoras de periferia, mulheres e outros segmentos vulnerabilizados.
Adicionar um pedágio ao acesso a dados abertos é um tiro no pé.
Primeiro, que ao tornar o mercado de dados mais caro, a infraestrutura se torna menos inclusiva.
A grande empresa vai ser mais competitiva que a pequena, o ente federado maior vai ser mais “digital” que o menor, os setores que poderiam colaborar vão preferir competir.
Segundo, a forma de cobrança que se cria aqui é sem precedentes. Estamos criando um tipo de “pedágio” para acesso a dados que o próprio governo vai definir quanto custa, impor o preço, e monopolizar a oferta. Esta não é – definitivamente – uma solução liberal para um Estado com falta de recursos. Tampouco é uma solução de inclusão, para um Brasil tão desigual.
Terceiro, o PL só legitima o status quo. Quem oferece hoje dados por parte do governo já cobra pelo serviço, e são várias as discussões judiciais sobre o tema. A cobrança é questionada por não ser transparente, por ser uma potencial intervenção na economia, ou por desrespeitar a privacidade das pessoas. O PL legitima a cobrança por acesso sem garantias ou critérios suficientes, sedimentando um caminho velho, que sabemos que não é suficiente.
Quarto, porque cobrar por dados públicos é uma má ideia. Essa é a visão do manifesto promovido pela sociedade civil, e que responde parágrafo a parágrafo, pergunta a pergunta, porque cada parte do texto atual é problemática, tanto nos artigos centrais, como nos secundários.
Quinto, porque a proposta traz riscos para o direito fundamental à proteção de dados pessoais. Ao criar um dever geral de oferta de serviços de interoperabilidade e uma prerrogativa genérica de cobrança por dados, que podem ser inclusive pessoais, sem prever parâmetros de segurança, controle e gestão de risco, o projeto dá margem para usos indevidos e violações da segurança dos dados.
Faz sentido que empresas de tecnologia, dentro do governo, compitam com o setor não-governamental? Sim e não. A área digital é estratégica, e merece investimentos pelo Estado. Problemas sociais se resolvem com apoio de soluções de tecnologia, e há espaço para empresas públicas. Mas o PL coloca estas empresas na berlinda: as empresas se tornam competidores do setor privado, inspiradas nas big techs, ao invés de se tornarem empresas que promovem o desenvolvimento social, inspiradas no governo como plataforma.
Qual a boa ideia que precisamos ter? Infraestruturas de dados abertas. O Pix é um bom exemplo disso. O pix é uma infraestrutura gratuita que permitiu aumento de bancarização, e o crescimento de diversos ecossistemas dentro e fora do governo. Precisamos de ideias e investimentos, mas imagine se o Pix já nascesse pago? De acordo com este texto da Febraban, isso provavelmente não seria compatível com sua função e impacto social.
Há formas de criar uma Lei que promova dados abertos como infraestrutura, mas o projeto em discussão cria o ônus (a cobrança) sem limitar os casos em que a cobrança é excessiva, e sem promover diretamente o governo como plataforma.
O projeto em discussão precisa de debate, de audiências, discussões. O projeto está escutando o governo, mas está esquecendo do papel do Congresso em escutar a sociedade. Até agora, nenhuma audiência pública foi realizada, todas discussões estão centradas no próprio governo, mesmo sendo um tema central e importante.
Precisamos de uma Lei que promova os dados abertos, e que se some a outras leis que já tem esse papel, como os decretos e resoluções de implementação de Dados Abertos e da Lei de Governo Digital, além, claro, de criarmos APIs que defendam marcos importantes como a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Mas para atingirmos isso precisamos de mais governo como plataforma, e menos governo como serviço. Mais estradas, e menos pedágios.
Quem diz que estamos no caminho certo? A própria OCDE. Eis um espaço que o Brasil quer entrar, que os liberais em especial consideram importante, e que para o qual o projeto de lei atual é de leitura preocupante. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem diretrizes claras de que dados abertos são infraestrutura, que não devem ser limitados e que devem ser promovidos. Seria bom inclusive chamar representantes da OCDE para o debate (em especial o Comitê de Governança Pública, responsável por implementar as últimas recomendações ao país, que tratam claramente do tema do PL).
Pelo exposto, precisamos urgentemente de mais debate, antes do texto sair da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP), tendo em conta a insegurança jurídica que sua aprovação acarretará, bem como os graves riscos para a cultura de transparência, de inovação e de dados abertos no Brasil.
Por esse motivo, solicitamos que o relator, deputado Tiago Mitraud (NOVO-MG), antes de avançar no projeto promova audiência e consulta pública, que permita avançarmos na agenda de governo digital, em prol do desenvolvimento social, e redução da carga tributária.
Subscrevem este manifesto:
AqualtuneLab
Abraji
AB2L – Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs
ACATE – Associação Catarinense de Tecnologia
ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
Associação Fiquem Sabendo
Brasil.IO
Coalizão Direitos na Rede
DataPolicy
Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas
Instituto de Governo Aberto
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
IP.rec – Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife
IRIS – Instituto de Referência em Internet e Sociedade
ITS Rio
LAPIN – Laboratório de Políticas Públicas e Internet
Open Knowledge Brasil
Transparência Brasil
…
Como aderir?
Se sua entidade desejar assinar o manifesto, envie um e-mail para secretariaexecutiva@direitosnarede.org.br com o assunto “Assinatura – Manifesto sobre PL 2224/21” e o nome da organização signatária no corpo do e-mail.