A consulta pública n° 41 [1] da Anatel, que trata da simplificação regulatória, foi apresentada com o propósito alegado de harmonizar a regulamentação com os avanços tecnológicos recentes no setor. O documento de Análise de Impacto Regulatório (AIR), documento produzido pela área técnica da agência com o objetivo de avaliar os benefícios e impactos das alternativas regulatórias apresentadas a cada consulta, demonstra, no entanto, que o objetivo da Anatel não se limita a dar “mais consistência e qualidade às normas que regem o mercado de telecomunicações”[2]. O que está sendo proposto no relatório de AIR é uma alteração radical na definição de serviço de telecomunicações, promovendo o fim da Norma 4/95, o que afetaria o consenso regulatório atual sobre serviço de telecomunicações.
É importante lembrar que a Norma 4/95 confere um entendimento jurídico à separação técnica da Internet em camadas, determinando a diferenciação entre o que é serviço de telecomunicações e o que é serviço de conexão à Internet, definido na norma como serviço de valor adicionado (SVA). De acordo com a Resolução 004 de 2011 do CGI.br, isso significa que “o acesso à rede e às aplicações que a Internet disponibiliza é sempre resultado da conjugação de dois serviços: um serviço de telecomunicações e um serviço de conexão, a cargo do seu respectivo prestador” .[3]
O serviço de valor adicionado (SVA) também está garantido na Lei Geral de Telecomunicações (Lei n°9472/97), no Art n°61 que diz:
- Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.
- § 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
- § 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
No entanto, desde que a Anatel extrapolou suas atribuições legais e criou em 2013 o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) [5] para fiscalizar a prestação do serviço de banda larga fixa, há uma grande insegurança jurídica e confusão normativa, contrariando o que diz a própria LGT. Isso ocorre porque a agência passou a afirmar que a conexão de banda larga é um serviço de conexão de Internet (SCI), que se encaixa dentro da categoria de serviço de telecomunicações. O SVA seria apenas aquele ofertado pelos provedores de conteúdos e aplicações, como redes sociais, serviços de buscas, comércio eletrônico, bancários, de armazenagem, aplicações de vídeo sob demanda, dentre outros. Dito de outra forma, a Anatel afirma que a camada lógica e a de infraestrutura de suporte à Internet são a mesma coisa, contrariando definições consolidadas na engenharia de redes e na governança da Internet.
Instaurou-se também um debate sobre o impacto fiscal em empresas que oferecem apenas o serviço de conexão de banda larga, geralmente pequenos provedores, e as grandes operadoras de telecomunicações. Ocorre que o SVA apenas recolhe o ISS, enquanto sobre o serviço de telecomunicações recai a cobrança do ICMS, Fust, Fistel e Funtel. Com o anseio de pagar menos impostos e ampliar seus lucros, sem oferecer contrapartidas de universalização para a sociedade, as operadoras de telecomunicações tem pressionado a agência para alterar a definição de serviço de Internet. O que vemos hoje é, portanto, um problema criado pelo próprio movimento da Anatel que visa a assumir o monopólio da regulamentação da Internet em benefício das grandes operadoras.
Mas o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu em 2017 que a oferta de serviço de Internet é serviço de valor adicionado, não constituindo serviço de telecomunicações. Além disso, no cenário atual, legislativo e regulatório, é impossível confundir Internet com telecomunicações. Além da LGT, o Marco Civil da Internet (Lei n°12.965/14), e o decreto que o regulamentou (Decreto n°8.771/2016), trazem definições sobre serviço de conexão à Internet e definem atribuições específicas para os entes públicos, diferentes do serviço de telecomunicações e das atribuições da Anatel expressas no Art.19 da LGT.
Com a Consulta Pública n°41, o corpo técnico da agência retomou a idéia de substituir a Norma 4/95 no debate sobre o serviço de comunicação multimídia (SCM). O relatório de AIR identifica que há um “desalinhamento no atual arcabouço normativo quanto à classificação da conexão da Internet como um serviço de telecomunicações e/ou como um serviço de valor adicionado, bem como falta de clareza sobre quais serviços de telecomunicações podem permitir a conexão de seus usuários à Internet e em que contextos”. Para sanar o que a Anatel entende ser um problema na relação SVA/SCM, a proposta é que a Norma 4/95 seja substituída e que a diferença tributária entre os serviços de telecomunicações e SVA seja reduzida. A agência afirma que poderá estabelecer um prazo de adequação para os pequenos prestadores que ainda se utilizam do SVA e “adequará os regulamentos atuais para estabelecer que a conexão à Internet em banda larga faz parte do serviço de telecomunicações correspondente”. [6]
Para corroborar com esta posição, a área técnica, em parecer no AIR, descrito abaixo, ainda fez a comparação entre o SCM destacando o SVA, levantando a questão de que com esta característica tributária e havendo o acesso à internet, o SMP estaria ilegal, já que este serviço não tem o SVA em seu arcabouço regulatório e consecutivamente tributário:
“Note-se, então, que a alegação de que a substituição da Norma nº 4/1995 iria de encontro ao MCI ou afetaria o modelo de governança da internet é imprecisa, pois se isso de fato o fosse, o modelo atual de prestação de banda larga móvel (SMP) seria ilegal, já que nele não temos a aplicação da mencionada Norma nem o envolvimento de um prestador de SVA para que ocorra a conexão à internet.”
É relevante destacar que, de fato, o SMP está ilegal e prejudicando a arrecadação tributária dos municípios onde o serviço é prestado. Esta remoção do SVA na regulamentação ocorreu em 2014 conforme destacado no Art. 44, §2º da Resolução 477/2007 [7]. A Anatel poderia corrigir este erro técnico, pois, ainda que resguardadas algumas especificidades, a camada lógica também existe no serviço móvel pessoal, reinserindo o SVA na regulamentação. Entretanto, o que o regulador pretende é revisar arbitrariamente e à revelia da legislação existente conceitos que já estão bem definidos, uma iniciativa que terá efeitos devastadores sobre os pequenos provedores, por exemplo, e impacto na arrecadação de impostos que poderiam atender políticas públicas.
Ainda, destaca-se outro tema relevante sobre o parecer da área técnica no AIR, que manteve a vedação de interconexão de rede para entes públicos e entidades sem fins lucrativos no cumprimento e atendimento de políticas públicas e sociais. Esta vedação imputa às políticas publicas de inclusão digital e acesso, bem como, às redes de internet comunitária, uma qualidade de serviço inferior, o que denota incompatibilidade deste parecer com os princípios da Anatel e da função social dos serviços de telecomunicações. Neste sentido repudiamos esta vedação e solicitamos que o Conselho Diretor ajuste a regulamentação para que políticas públicas e sociais possam usufruir deste serviço de atacado vital para a redução das desigualdades sociais e regionais das populações hoje não atendidas pelo setor privado.
Considerando o exposto acima, a Coalizão Direitos na Rede (CDR) alerta que, no processo de consolidação da Consulta Pública n°41 para promover a simplificação regulatória, a Anatel deve respeitar a separação entre serviço de Internet e serviço de telecomunicações – lembrando que os serviços de Internet caracterizados pela Norma 4/95 já têm sua governança a cargo do CGI.br. A substituição da Norma 4/95, não é apenas uma violação da Lei Geral de Telecomunicações, mas também pode constituir uma barreira para a inovação tecnológica no contexto do 5G, especialmente se considerarmos o papel dos prestadores de serviço de Internet nos novos modelos de negócio que estão emergindo com o desenvolvimento das redes neutras. Por último, a proibição de oferta de serviço de interconexão continua sendo uma barreira às políticas públicas e sociais, comprometendo a garantia da universalização do acesso como serviço essencial para o exercício pleno da cidadania e desrespeitando o caráter público das redes.
Brasília, 5 de agosto de 2022
Coalizão Direitos na Rede
[2] https://teletime.com.br/02/06/2022/anatel-aprova-consulta-publica-sobre-simplificacao-regulatoria/
[3] https://www.cgi.br/resolucoes/documento/2011/004/
[4] Ver declaração do Conselheiro da Anatel Emmanoel Campelo: https://www.convergenciadigital.com.br/Telecom/LGT-esta-no-limite-e-e-preciso-rever-a-norma-4-da-Internet%2C-diz-conselheiro-da-Anatel-60710.html
[5]Resolução 614 de 28 de maio de 2013: https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/resolucoes/2013/465-resolucao-614
[7] Resolução nº 477, de 7 de agosto de 2007 – Serviço Móvel Pessoal(SMP): https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/resolucoes/2007/9-resolucao-477