Carta ao Comitê AD HOC de Cibercrime

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22 de dezembro de 2021


V. Ex. Sra. Faouzia Boumaiza Mebarki
Presidente

Comitê Ad Hoc para Elaboração de Convenção Internacional sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação para Fins de Investigações Criminais

Ad Hoc Committee to Elaborate a Comprehensive International Convention on Countering the Use of Information and Communication Technologies for Criminal Purposes
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC)
UNODC New York Office
United Nations Headquarters
DC1 Building
Room 613
One United Nations Plaza
New York, NY 10017

Vossa Excelência,

Nós, organizações subscritas abaixo, trabalhamos para proteger e ampliar direitos humanos, online e offline. Esforços para tratar de crimes cibernéticos são uma preocupação nossa, tanto por crimes cibernéticos representarem uma ameaça a direitos e à dignidade humana, quanto por lei, políticas e iniciativas voltadas a acessar tais crimes são constantemente utilizadas para enfraquecer direitos fundamentais. Portanto, pedimos que o Comitê Ad Hoc inclua, de forma robusta, a participação da sociedade civil em todo o processo de seus trabalhos para o desenvolvimento e elaboração da convenção e que qualquer proposta de texto inclua salvaguardas aos direitos humanos aplicáveis a disposições materiais e procedimentais.

Panorama geral

A proposta de elaboração de uma “Convenção Internacional sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação para Fins Criminais” está sendo apresentada ao mesmo tempo em que mecanismos de direitos humanos da ONU chamam a atenção para o abuso presente em leis de crimes cibernéticos ao redor do mundo.

Em seu relatório de 2019, o relator especial dos direitos de liberdade de reunião e associação das Nações Unidas, Clément Nyaletsossi Voule, observou que “o surgimento em legislações e políticas de combate a crimes cibernéticos também abriu portas para a punição e vigilância de ativistas e manifestantes em vários países ao redor do mundo”. Em 2019 e novamente este ano, a Assembleia Geral da ONU expressou grande preocupação em relação às legislações sobre crimes cibernéticos estarem sendo utilizadas de forma inadequada para atingir defensores de direitos humanos ou impedir seu trabalho e colocar em risco a segurança contrariando as normas internacionais. Isso é resultado de anos de denúncias feitas por organizações não governamentais sobre os abusos contra direitos fundamentais decorrentes de leis sobre crimes cibernéticos.

Quando a convenção foi proposta pela primeira vez, mais de 40 das principais organizações e especialistas de direitos digitais e direitos humanos, incluindo vários dos signatários desta carta, solicitaram para que as delegações votassem contra a resolução, alertando que a convenção proposta é uma ameaça aos direitos humanos.

Antes da primeira sessão do Comitê Ad Hoc, nós reiteramos estas preocupações. Se a convenção da ONU sobre crimes cibernéticos proceder, o objetivo deve ser o combate ao uso de tecnologias de informação e comunicação para fins criminais sem prejudicar os direitos fundamentais daqueles que se pretende proteger para que as pessoas possam livremente desfrutar e exercitar seus direitos, online e offline. Qualquer proposta de convenção deve incorporar salvaguardas de direitos humanos claras e robustas. A convenção sem tais salvaguardas ou que dilua as obrigações estatais em relação aos direitos humanos colocaria os indivíduos em risco e tornaria nossa presença digital ainda mais insegura, ambos ameaçando direitos fundamentais.

Enquanto o Comitê Ad Hoc trabalha para criar a convenção nos próximos meses, é vital que seja seguida uma abordagem baseada em direitos humanos para garantir que a proposta de texto não seja utilizada como ferramenta para reprimir a liberdade de expressão, violar a privacidade e a proteção de dados ou prejudicar indivíduos e comunidades em risco.

Escopo das Disposições Materiais Criminais

Não há consenso quanto a como abordar crimes cibernéticos a nível global, nem há um entendimento comum ou definição sobre o que constitui o crime cibernético. Da perspectiva dos direitos humanos, é essencial manter o escopo restrito em qualquer convenção sobre crimes cibernéticos. Isto é, não é porque um crime envolve tecnologia que necessariamente deve ser incluído na convenção. Por exemplo, normas mais amplas sobre crimes cibernéticos por vezes simplesmente trazem penalidades devido ao uso de computadores ou dispositivos eletrônicos para a comissionar uma infração. As normas são especialmente problemáticas quando incluem conteúdo relacionado a crimes. Leis sobre crimes cibernéticos com texto vago que pretendem combater a desinformação e o suporte online ou glorificar do terrorismo e extremismo, podem ser usadas para prender blogglers ou bloquear plataformas inteiras em certos países. Deste modo, elas falham em atender aos padrões internacionais de liberdade de expressão. Tais leis colocam jornalistas, ativistas, pesquisadores, membros da comunidade LGBTQIA+ e manifestantes em risco e podem ter um efeito assustador na sociedade como um todo.

Mesmo normas que focam mais especificamente em crimes dependentes do mundo cibernético são utilizadas para reduzir direitos. Leis que criminalizam o acesso não autorizado a computadores e sistemas têm sido usadas para atacar hackers de segurança, delatores, ativistas e jornalistas. Frequentemente, pesquisadores em segurança, responsáveis por auxiliar a manter todos seguros, são pegos pela vaguidão destas leis e enfrentam acusações criminais por identificarem falhas na segurança de sistemas. Alguns Estados também interpretam leis sobre o acesso não autorizado de forma tão ampla que, na prática, criminalizam todo e qualquer delator; sob esta interpretação, qualquer divulgação de informações que violem políticas corporativas ou estatais podem ser tratadas como “crime cibernético”. Uma futura convenção deve explicitamente incluir normas quanto à má fé, não deve transformar políticas de uso de computadores corporativos e estatais em responsabilidades criminais, deve ser articulada de forma clara e promover a ampla defesa do interesse público, e incluir disposições claras que permitam que hackers de segurança executem seu trabalho sem medo de serem processados.

Direitos Humanos e Salvaguardas Processuais

Nossas informações públicas e privadas, antes trancadas em uma gaveta, agora encontram-se em dispositivos digitais e na nuvem. A polícia ao redor do mundo utiliza um conjunto de ferramentas investigativas cada vez mais intrusivas para acessar provas digitais. Frequentemente, suas investigações atravessam fronteiras sem salvaguardas adequadas e perpassam proteções de tratados de auxílio judiciário mútuo. Em vários contextos, nenhuma supervisão judiciária é incluída, e o papel de reguladores independentes de proteção de dados é enfraquecido. Normas nacionais, incluindo as de crimes cibernéticos, são frequentemente inadequadas para proteger contra a desproporcionalidade e vigilância desnecessária.

Uma futura convenção deve detalhar robustas salvaguardas processuais e de direitos humanos que condicionem investigações criminais conduzidas sob o escopo da convenção. Ela deve assegurar que qualquer interferência ao direito à privacidade atenda aos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, inclusive através da exigência de autorização judicial independente para medidas de vigilância. Também não pode impedir Estados de adotar salvaguardas adicionais que limitem o uso de dados pessoais pelas autoridades policiais, uma vez que esta proibição reduziria a privacidade e a proteção de dados.

Uma futura convenção deve reafirmar a necessidade de Estados adotarem e impor “legislações de privacidade fortes, robustas e extensivas, inclusive sobre proteção de dados, que atendam às normas internacionais de direitos humanos quanto à salvaguardas, fiscalização e remédios para proteger o direito à privacidade de forma eficaz.

Existe um risco real de que, ao tentar convencer todos os Estados a assinarem a proposta de convenção sobre crimes cibernéticos da ONU, práticas ruins quanto a direitos humanos sejam normalizadas, deteriorando a proteção do indivíduo. Portanto, é essencial que uma futura convenção explicitamente reforce as salvaguardas processuais para proteger os direitos humanos e resistir a tentativas de contornar acordos de assistência mútua.

Participação Significativa

Ante o exposto, pedimos ao Comitê Ad Hoc que ativamente inclua as organizações da sociedade civil em consultas – incluindo aquelas que tratam de segurança digital e grupos de assistência a comunidades e indivíduos vulnerabilizados -, o que não ocorreu quando o processo começou em 2019 ou em qualquer outro momento posterior.

Assim, requeremos que o Comitê:

  • Credencie especialistas acadêmicos e da área de tecnologia, e organizações não
    governamentais interessadas, incluindo aqueles com expertise relevante em direitos
    humanos mas que não tem um status consultivo em relação ao Conselho Econômico
    e Social da ONU, em tempo hábil e de forma transparente, e permita que os grupos
    participantes registrem múltiplos representantes para possibilitar a participação
    remota através de diversos fuso-horários.
  • Garanta que as modalidades de participação reconheçam a diversidade de atores
    não governamentais, dando a cada grupo interessado tempo adequado de fala,
    considerando que a sociedade civil, setor privado e academia podem ter visões e
    interesses distintos.
  • Garanta a participação efetiva de participantes credenciados, incluindo a
    oportunidade de receber em tempo justo acesso a documentos, providenciar
    serviços de tradução e falar nas sessões do Comitê (pessoal ou remotamente), e
    submeter por escrito notas técnicas e recomendações.
  • Manter atualizada uma página online dedicada a informações relevantes, como
    informações práticas (detalhes sobre o credenciamento, horário/localização, e
    participações remotas), documentos organizacionais (i.e., agendas, documentos de
    discussão, etc.), depoimentos e outras intervenções feitas por Estados e outros atores, documentos de referência, documentos de trabalho, rascunhos e atas de
    reuniões.

O combate aos crimes cibernéticos não deveria prejudicar os direitos fundamentais e a
dignidade das vidas que esta Convenção afetará. Os Estados devem garantir que uma futura convenção sobre crimes cibernéticos esteja alinhada com suas obrigações frente aos direitos humanos e devem se opor a qualquer proposta que seja inconsistente com tais obrigações.

Apreciamos fortemente se pudessem circular a presente carta aos membros do Comitê Ad Hoc e publicá-la no site do Comitê.

Assinado*,

  1. Access Now – International
  2. Alternative ASEAN Network on Burma (ALTSEAN) – Burma
  3. Alternatives – Canada
  4. Alternative Informatics Association – Turkey
  5. AqualtuneLab – Brazil
  6. ArmSec Foundation – Armenia
  7. ARTICLE 19 – International
  8. Asociación por los Derechos Civiles (ADC) – Argentina
  9. Asociación Trinidad / Radio Viva – Trinidad
  10. Asociatia Pentru Tehnologie si Internet (ApTI) – Romania
  11. Association for Progressive Communications (APC) – International5
  12. Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc Brasil) – Brazil
  13. ASEAN Parliamentarians for Human Rights (APHR) – Southeast Asia
  14. Bangladesh NGOs Network for Radio and Communication (BNNRC) – Bangladesh
  15. BlueLink Information Network – Bulgaria
  16. Brazilian Institute of Public Law – Brazil
  17. Cambodian Center for Human Rights (CCHR) – Cambodia
  18. Cambodian Institute for Democracy – Cambodia
  19. Cambodia Journalists Alliance Association – Cambodia
  20. Casa de Cultura Digital de Porto Alegre – Brazil
  21. Centre for Democracy and Rule of Law – Ukraine
  22. Centre for Free Expression – Canada
  23. Centre for Multilateral Affairs – Uganda
  24. Center for Democracy & Technology – United States
  25. Center for Justice and International Law (CEJIL) – International
  26. Centro de Estudios en Libertad de Expresión y Acceso (CELE) – Argentina
  27. Civil Society Europe
  28. Coalition Direitos na Rede – Brazil
  29. Código Sur – Costa Rica
  30. Collaboration on International ICT Policy for East and Southern Africa (CIPESA) – Africa
  31. CyberHUB-AM – Armenia
  32. Data Privacy Brazil Research Association – Brazil
  33. Dataskydd – Sweden
  34. Derechos Digitales – Latin America
  35. Defending Rights & Dissent – United States
  36. Digital Citizens – Romania
  37. DigitalReach – Southeast Asia
  38. Digital Rights Watch – Australia
  39. Digital Security Lab – Ukraine
  40. Državljan D / Citizen D – Slovenia
  41. Electronic Frontier Foundation (EFF) – International
  42. Electronic Privacy Information Center (EPIC) – United States
  43. Elektronisk Forpost Norge – Norway
  44. Epicenter.works for digital rights – Austria
  45. European Center For Not-For-Profit Law (ECNL) Stichting – Europe
  46. European Civic Forum – Europe
  47. European Digital Rights (EDRi) – Europe
  48. eQuality Project – Canada
  49. Fantsuam Foundation – Nigeria6
  50. Free Speech Coalition – United States
  51. Foundation for Media Alternatives (FMA) – Philippines
  52. Fundación Acceso – Central America
  53. Fundación Ciudadanía y Desarrollo de Ecuador
  54. Fundación CONSTRUIR – Bolivia
  55. Fundación EsLaRed de Venezuela
  56. Fundación Karisma – Colombia
  57. Fundación OpenlabEC – Ecuador
  58. Fundamedios – Ecuador
  59. Garoa Hacker Clube – Brazil
  60. Global Partners Digital – United Kingdom
  61. GreenNet – United Kingdom
  62. GreatFire – China
  63. Hiperderecho – Peru
  64. Homo Digitalis – Greece
  65. Human Rights in China – China
  66. Human Rights Defenders Network – Sierra Leone
  67. Human Rights Watch – International
  68. Igarapé Institute — Brazil
  69. IFEX – International
  70. Institute for Policy Research and Advocacy (ELSAM) – Indonesia
  71. The Influencer Platform – Ukraine
  72. INSM Network for Digital Rights – Iraq
  73. Internews Ukraine
  74. InternetNZ – New Zealand
  75. Instituto Beta: Internet & Democracia (IBIDEM) – Brazil
  76. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) – Brazil
  77. Instituto Educadigital – Brazil
  78. Instituto Nupef – Brazil
  79. Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) – Brazil
  80. Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) – Brazil
  81. Instituto Panameño de Derecho y Nuevas Tecnologías (IPANDETEC) – Panama
  82. Instituto para la Sociedad de la Información y la Cuarta Revolución Industrial – Peru
  83. International Commission of Jurists – International
  84. The International Federation for Human Rights (FIDH)
  85. IT-Pol – Denmark
  86. JCA-NET – Japan
  87. KICTANet – Kenya7
  88. Korean Progressive Network Jinbonet – South Korea
  89. Laboratorio de Datos y Sociedad (Datysoc) – Uruguay
  90. Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) – Brazil
  91. Latin American Network of Surveillance, Technology and Society Studies (LAVITS)
  92. Lawyers Hub Africa
  93. Legal Initiatives for Vietnam
  94. Ligue des droits de l’Homme (LDH) – France
  95. Masaar – Technology and Law Community – Egypt
  96. Manushya Foundation – Thailand
  97. MINBYUN Lawyers for a Democratic Society – Korea
  98. Open Culture Foundation – Taiwan
  99. Open Media – Canada
  100. Open Net Association – Korea
  101. OpenNet Africa – Uganda
  102. Panoptykon Foundation – Poland
  103. Paradigm Initiative – Nigeria
  104. Privacy International – International
  105. Radio Viva – Paraguay
  106. Red en Defensa de los Derechos Digitales (R3D) – Mexico
  107. Regional Center for Rights and Liberties – Egypt
  108. Research ICT Africa
  109. Samuelson-Glushko Canadian Internet Policy & Public Interest Clinic (CIPPIC) – Canada
  110. Share Foundation – Serbia
  111. Social Media Exchange (SMEX) – Lebanon, Arab Region
  112. SocialTIC – Mexico
  113. Southeast Asia Freedom of Expression Network (SAFEnet) – Southeast Asia
  114. Supporters for the Health and Rights of Workers in the Semiconductor Industry (SHARPS) – South Korea
  115. Surveillance Technology Oversight Project (STOP) – United States
  116. Tecnología, Investigación y Comunidad (TEDIC) – Paraguay
  117. Thai Netizen Network – Thailand
  118. Unwanted Witness – Uganda
  119. Vrijschrift – Netherlands
  120. West African Human Rights Defenders Network – Togo
  121. World Movement for Democracy – International
  122. 7amleh – The Arab Center for the Advancement of Social Media – Arab Region8

Indivíduos especialistas e acadêmicos

1. Jacqueline Abreu, Universidade de São Paulo
2. Chan-Mo Chung, Professor, Inha University School of Law
3. Danilo Doneda, Brazilian Institute of Public Law
4. David Kaye, Clinical Professor of Law, UC Irvine School of Law, former UN Special
Rapporteur on Freedom of Opinion and Expression (2014-2020)
5. Wolfgang Kleinwächter, Professor Emeritus, University of Aarhus; Member, Global
Commission on the Stability of Cyberspace
6. Douwe Korff, Emeritus Professor of International Law, London Metropolitan University
7. Fabiano Menke, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
8. Kyung-Sin Park, Professor, Korea University School of Law
9. Christopher Parsons, Senior Research Associate, Citizen Lab, Munk School of Global
Affairs & Public Policy at the University of Toronto
10. Marietje Schaake, Stanford Cyber Policy Center
11. Valerie Steeves, J.D., Ph.D., Full Professor, Department of Criminology University of
Ottawa


*Lista de signatários referente a 14 de Fevereiro de 2022