Carta aos Membros do Senado Federal sobre a Convenção de Budapeste

Aos Membros do Senado Federal

Ref: PDL 255/2021 (Convenção de Budapeste sobre o Crime Cibernético, de 2001)

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) é uma rede de entidades que reúne 48 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação a defesa do acesso à internet, da liberdade de expressão, da privacidade e da proteção de dados pessoais na Internet. As entidades que integram o coletivo participaram ativamente da construção de políticas públicas de Internet de grande relevância para o Brasil, como os processos de discussão e elaboração do Marco Civil da Internet e de seu decreto regulamentador, bem como da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Reconhecendo a importância do debate legislativo sobre a cooperação internacional na matéria em questão, a Coalizão vê com preocupação a celeridade que tem caracterizado a tramitação do Projeto de Decreto Legislativo 255/2021, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, que ratifica a Convenção de Budapeste sobre o Crime Cibernético de 2001.  Não há urgência que justifique a rapidez com que a matéria tem sido tratada. O prazo para adesão nacional à Convenção é de cinco anos a contar de 11 de dezembro de 2019, ocasião da 1363ª Reunião de Delegados de Ministros do Conselho da Europa, quando o convite foi feito1. Assim sendo, o Brasil ainda tem no mínimo 3 anos para deliberar sobre a matéria, período em que seria possível conduzir discussão pública ampla e democrática. Desse modo, o caráter excessivamente célere do processo legislativo do PDL, que tramitou por menos de quatro meses na Câmara dos Deputados, se revela injustificado.

A importância do aprofundamento democrático da discussão também é corroborada pelo exame das disposições que compõem o conteúdo da convenção. Tais disposições não constituem textos normativos autoexecutáveis, mas medidas e diretrizes para que suas determinações sejam incorporadas aos ordenamentos nacionais. Ainda, a adesão total ao texto não é necessária ou pertinente, mesmo porque a própria convenção faculta aos Estados a possibilidade de aderir com ressalvas: é possível exigir, por meio de declarações, elementos suplementares para aplicação de determinados dispositivos (art. 40) e, mediante manifestação de intenção, optar ou não por fazer uso de reservas previstas em artigos específicos (art. 42).

Dezenas de países exerceram essas prerrogativas a fim de garantir que a ratificação da convenção se desse em harmonia com as demais normas que compõem seus sistemas jurídicos. Do mesmo modo, a adesão brasileira à totalidade da norma sem debate amplo e tecnicamente maduro sobre ressalvas cabíveis em temas e dispositivos específicos representa um grave risco à harmonia do arcabouço regulatório nacional relativo aos direitos digitais. Tal arcabouço é internacionalmente prestigiado pela maturidade técnica e construção democrática que caracterizaram sua consolidação, qualidades que poderiam ser lesadas por uma ratificação apressada da convenção em sua totalidade.

A esse respeito, importa destacar dispositivos específicos da norma que suscitam preocupações por seu impacto potencialmente lesivo ao ecossistema nacional. Os artigos 2º e 8º, em especial, que tratam respectivamente do acesso ilegítimo a sistema informático e da burla informática, carregam o potencial para criminalizar indevidamente condutas legítimas e rotineiras de ativistas e pesquisadores de segurança da informação.  Na ausência de ressalvas sobre tais disposições, há risco de criação de um ambiente hostil à pesquisa e detecção de vulnerabilidades de segurança em sistemas informáticos, uma prática essencial à manutenção de um ecossistema mais seguro.

A carência dessas reservas contrariaria, ainda, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de 20132. Esse documento recomenda a inclusão de salvaguardas explícitas voltadas a garantir a não criminalização de condutas regulares em conformidade ao uso da internet em quaisquer iniciativas de promoção da segurança no ciberespaço.

Por fim, cumpre destacar que o conteúdo da convenção impacta não apenas matérias já reguladas, mas também debates legislativos em curso no Congresso Nacional, a exemplo da reforma do Código de Processo Penal, o Projeto de Lei 2630/2020 (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet) e o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para segurança pública e persecução penal. Considerando os acúmulos relativos à proteção dos direitos digitais em cada um desses processos legislativos, fica evidente a necessidade de exame da possibilidade de ressalvar disposições específicas da convenção em conformidade aos respectivos avanços e debates legislativos correntes.

Ante o exposto e considerando a inexistência de urgência que justifique sua tramitação tão célere e o impacto severo da Convenção de Budapeste sobre os direitos digitais no país, a Coalizão Direitos na Rede solicita respeitosamente (i) a realização de audiência pública na Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, sendo ouvidos representantes dos diversos setores e perspectivas atinentes à matéria e (ii) prorrogação, pelo prazo máximo, de acordo com o Art. 376 inciso III do Regimento Interno do Senado Federal, da tramitação da matéria em comissão para o debate do projeto e eventuais emendas apresentadas. 

Brasília, 21 de Outubro de 2021.

1 https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectId=090000168098fb47

2 Organização dos Estados Americanos. Relatório anual da Relatoria para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2013, página 132, parágrafo 120. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/relatorios/anuais.asp

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