Posicionamento da CDR sobre a implementação do 5G no Brasil

A ideia de que estamos diante de uma “Revolução do 5G”, a infraestrutura de conectividade de quinta geração da telefonia móvel sobre a qual tecnologias como inteligência artificial, aprendizado de máquina ou Internet das Coisas se desenvolverão, tem acelerado o debate sobre uma tecnologia que vai mudar profundamente a forma como usamos e acessamos a internet, com impactos na organização do trabalho, na proteção de direitos fundamentais e na sociedade como um todo.
 
A Coalizão Direitos na Rede (CDR), articulação que reúne 48 entidades que pesquisam e atuam com direitos digitais em diferentes regiões do Brasil, diante dos potenciais benefícios do 5G e prováveis ameaças às políticas de universalização de acesso à internet e da infraestrutura de telecomunicações presentes no leilão do 5G a ser celebrado em novembro desse ano, entrou com uma representação no Ministério Público Federal para que sejam adotadas medidas cautelares e apuradas as responsabilidades por improbidade administrativa da Anatel e violações ao Marco Civil da Internet.

A CDR também vem à público se posicionar sobre a implementação dessa tecnologia no país.  
Considerando que o 5G é parte de um processo incremental e evolutivo, que vem desde a digitalização do sinal (2G) com o objetivo de aumentar a capacidade de tráfego de dados da rede, e que com as gerações três e quatro (3G e 4G) permitiu a expansão da utilização da internet móvel e aplicativos para transmissão de áudio e vídeo por streaming, acreditamos que suas aplicações e a ampliação de dispositivos nas bordas da rede podem, de alguma forma, ampliar o bem-estar social.

Com uma política de proteção de dados adequada, sua ultra confiabilidade, baixa latência e alta capacidade de conectar “coisas” vai tornar as redes de telecomunicações mais capazes de dar suporte a atividades de caráter crítico, como redes inteligentes para provimento de energia elétrica e saneamento básico, possibilitar a realização de cirurgia remota, o acesso a aplicações diversas nos laboratórios de tecnologia nas universidades públicas, e ao desenvolvimento de circuitos avançados integrados com uso de tecnologias abertas. Apesar do elevado número de patentes envolvendo o 5G e das disputas entre EUA e China, o Brasil possui capacidade de se colocar como um importante ator na pesquisa e produção de inovações associadas a essa nova tecnologia.

O fato de que houve uma inflexão no discurso sobre a universalização do acesso, de que o 5G atenderá a conexão de dispositivos e de “todas as coisas”, incluindo nossos corpos, praticamente subtraindo os seres humanos e o direito de acesso da equação, provoca grande preocupação nas organizações da sociedade civil que há anos trabalham com direitos digitais. Desde a maneira equivocada como a Anatel desenhou o leilão das faixas de radiofrequência destinadas ao 5G até o seu elevado custo de implementação, que supera a capacidade de investimento do Estado e do setor privado, em vez de promover benefícios, a chegada do 5G vai provocar danos irreversíveis aos cofres públicos e aprofundar as desigualdades sociais e de acesso à internet no Brasil, caso esse debate não seja feito no contexto mais amplo das políticas públicas de acesso e a agência reguladora não altere sua atual política de outorga do espectro eletromagnético, realizando modificações fundamentais no edital do leilão do 5G.

Anatel e o leilão do 5Gimprobidade administrativa e barreiras à inovação
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) publicou recentemente a versão definitiva do edital do 5G, constituindo a maior oferta de espectro da história da agência, algo incomparável ao que vem sendo feito em outros países, com a licitação das radiofrequências nas faixas de 700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz. Assumindo que esses blocos de frequência são bens públicos e em acordo com o que foi apresentado em audiência pública pelo Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Aroldo Cedraz [1] e com o parecer da SeinfraCOM (TCU) [2], gostaríamos de destacar que o atual edital contém inúmeras falhas e distorções que geram prejuízos bilionários aos cofres públicos e beneficiam exclusivamente as operadoras, consolidando o cenário de ofertas caras, baixa qualidade e cobertura deficiente, ampliando o fosso digital:    

  • Erro na precificação das faixas devido ao superdimensionamento das Estações Rádio Base (ERBs) e taxas de depreciação desconectadas da realidade: devido às premissas utilizadas para definir o preço da faixa de 3,5GHz, um número muito reduzido de municípios (apenas 60) foram considerados economicamente viáveis. O superdimensionamento de ERBs em 222 cidades, superando em até cinco vezes o parâmetro técnico de comparação, projeções equivocadas e pouco justificadas de aumento da demanda pelo 5G, o que distorce a necessidade de investimento por parte das operadoras, erros grosseiros na identificação de áreas urbanas e o fato de que cidades importantes como Brasília, Porto Alegre, Manaus, Salvador e mais de cinco mil municípios seriam considerados economicamente inviáveis segundo a Anatel, elevou de maneira equivocada o montante de recursos a serem investidos. Isso significa que, caso uma operadora queira investir no 5G, apenas 1% dos municípios brasileiros seriam vistos como lucrativos. A principal consequência é que o valor do investimento em todas as outras cidades vai acabar entrando no cálculo dos compromissos de investimento, ou seja, será abatido do preço da faixa de 3,5GHz, reduzindo artificialmente em bilhões de reais o seu valor. Trata-se de um dano inestimável ao erário público, já que, ao descontar do preço mínimo da faixa de 3,5GHz o valor a ser investido nesses municípios, a União terá que pagar por algo que em boa medida seria altamente rentável para as empresas.
  • Compromissos de atendimento insuficientes: a alegação da Anatel de que o Edital vai garantir a ampliação do 5G em todas as capitais do país até 2022 é falsa. Ainda no caso da faixa de 3,5GHz, os compromissos de atendimento incluem quantidades limitadas de ERBs de acordo com a população do município, sem apresentar qualquer vínculo com a cobertura territorial ou com as necessidades dos usuários. Para cidades com mais de 500 mil habitantes, o território seria satisfatoriamente atendido apenas em 2025, chegando posteriormente em cidades de menor porte. Como consequência dos erros cometidos pela Anatel, cerca de 1.144 municípios que foram considerados economicamente inviáveis, representando mais de 97% dos municípios com mais de 30.000 habitantes, estabeleceu-se que, nesses municípios, seria implantada apenas a infraestrutura exigida nos compromissos de abrangência do edital, o que desobriga as operadoras de realizar investimentos posteriores.  Além disso, para cidades com menos de 20 mil habitantes, foi definida a implantação de redes de fibra ótica de 1Gbps, contrariando a determinação do Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU V), que define um mínimo de 10Gbps. Considerando que o prazo dessa obrigação de velocidade mínima vai vigorar por 20 anos, prorrogável por igual período segundo o prazo máximo de concessão conferido pela Lei no. 13.879/19, inúmeras localidades terão acesso a uma velocidade defasada e que em nada contribui para a universalização do 5G e ao acesso amplo da população às suas tecnologias associadas.
  • Sobreposição de infraestrutura: se é certo que as faixas de frequência com maior capacidade de transmissão de dados, como é o caso das frequências operadas para o 5G, têm menor alcance e, consequentemente, exigem número muito maior de ERBs, pensamos que a estimativa realizada pela ANATEL desconsiderou, como apontou a SeinfraCom, que muitos municípios já têm infraestrutura de suporte ao serviço prestado na tecnologia 4G. Esse é um dado fundamental e que precisa ser levado em conta, na medida em que o Edital prevê como contrapartidas a implantação desta tecnologia em localidades, trechos de rodovias e municípios, nas frequências de 700 MHz e 2,3 GHz. Este erro da ANATEL implicará na replicação de infraestrutura mínima que já existe, novamente com um impacto negativo de R$18 bilhões de reais ao erário público.
  • Leilão da faixa de 26GHz precisa ser fragmentado: por ser uma faixa de frequência alta com ondas milimétricas, pode-se dizer que a banda de 26GHz é a mais preciosa, aquela que traz mais vantagens para o o uso do 5G. Por possibilitar a conexão de milhares de dispositivos em velocidades altas, é dela que dependerá toda tecnologia associada à Indústria e Agricultura 4.0, medicina robótica, cidades, transporte e logística, apenas para citar alguns exemplos. Como essa tecnologia tem um potencial ainda pouco explorado, tanto em termos de P&D, quanto economicamente, licitar toda a capacidade da banda de 26GHz de uma só vez e por um prazo de 20 anos vai limitar a diversidade de tecnologias a serem desenvolvidas para aplicações futuras, bem como reduzir as possibilidades de exploração econômica dessa faixa. Vendida a preços irrisórios, sem prazo para ativação e com compromissos insuficientes para um leilão não oneroso, a Anatel mais uma vez atua em benefício das operadoras, que vão obter o controle das faixas mais valiosas do 5G, promovendo limites à inovação e colocando-se, portanto, na contramão do que países como Estados Unidos, Coréia do Sul e França fizeram.
  • Compromissos de conectividade abaixo do necessário: considerando a distinção entre cobertura de acesso das escolas, a possibilidade de uma escola estar localizada em uma área de cobertura da rede e onde seja possível o atendimento por determinada tecnologia, e conectividade, isto é, a efetiva conexão de um estabelecimento de ensino à banda larga, concordamos com o parecer da SeinfraCOM  de que não constavam no edital do 5G compromissos que determinem que as empresas conectem as escolas nos próximos 20 anos. Não há nenhuma exigência expressa de que as empresas que vencerem o leilão realizem a conexão de qualquer escola, já que o 5G é um Serviço Móvel Privado (SMP) e opera em regime de autorização, livre, portanto, de metas de universalização. Mesmo que a Anatel de fato acate as recomendações do TCU e do GT do 5G da Câmara dos Deputados, incluindo na nova versão do edital a alocação de recursos para as escolas na outorga da faixa de 26GHz, o valor é ainda insuficiente para cobrir as necessidades de qualidade e velocidade das escolas públicas urbanas e rurais. Vale destacar ainda que qualquer política de conectividade nas escolas deve ser avaliada, debatida e coordenada no contexto mais amplo das políticas públicas e dos recursos já existentes, como o Educação Conectada, as metas determinadas pelo PGMU, ou a Lei 14.109/20, que torna obrigatório que todas as escolas públicas brasileiras, em especial as escolas rurais, sejam dotadas de acesso à internet em banda larga, em velocidades adequadas, até o ano de 2024. Se até hoje a Anatel não conseguiu fazer valer os compromissos existentes para a conectividade das escolas públicas, gostaríamos de questionar a capacidade da agência de fiscalizar e coordenar as ações relativas aos compromissos atrelados ao 5G.
  • Processo acelerado para a aprovação do edital: apesar de este ser, segundo a própria Anatel, o “maior certame já realizado pela agência, tanto em valor das faixas, quanto na quantidade de espectro ofertada”, a minuta do edital, que foi aprovada pelo Conselho Diretor da agência em fevereiro deste ano e enviada ao TCU juntamente com os estudos técnicos, apresentou inúmeras inconsistências, que incluem desde erros na precificação, indícios de ilegalidade na inclusão de alguns compromissos, como a construção da rede privativa, até ausência de garantias da limpeza da faixa de 3.5GHz. Das oito incompletudes apontadas pelo TCU, apenas em junho a Anatel conseguiu sanar três problemas e justificar todo o resto. Entre o edital ter sido apresentado para o TCU, o levantamento das significativas inconsistências e riscos de lesão aos cofres e ao interesse públicos e a aprovação do edital passaram-se apenas seis meses, um período relativamente curto considerando a magnitude dos valores e interesses que estão em jogo. No caso de haver pouco tempo para realizar a análise técnica e reparar as irregularidades do edital, estamos diante de um prejuízo de cerca de R$ 70 bilhões de reais para a União, além do retardamento da ampliação do acesso à internet para milhões de brasileiros de média e baixa renda.

Além do modelo de leilão do 5G proposto pela Anatel apresentar inúmeras ilegalidades, precisamos dar especial atenção ao impacto que esta nova modalidade de acesso a serviços móveis terá sobre a população de baixa renda. Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios, sabe-se que 58% dos usuários de internet acessam a rede via internet móvel, sendo que 85% são das classes D e E, e 79% se encontra nas áreas rurais. Cabe lembrar também que o modelo comercial do SMP (Serviço Móvel Pessoal) está baseado na venda de planos pré-pago e controle, ou seja, grande parte da população tem acesso a uma internet limitada e vulnerável a práticas de zero-rating. Soma-se a isso os preços proibitivos dos aparelhos smartphones e dispositivos adequados à recepção do sinal de 5G, situação que se agrava na atual crise econômica e social.
 
É necessário questionar, portanto, o quanto a implementação do 5G no Brasil irá sanar tais desigualdades, que atualmente dividem o pais entre usuários de primeira classe, aqueles que se conectam de maneira ininterrupta à internet e facilmente terão acesso a aparelhos e redes 5G, e usuários de segunda classe. Na forma em que o debate foi posto pela Anatel e pelo Ministério das Comunicações, e no ímpeto de acelerar o leilão, muitas perguntas permanecem sem resposta. O quanto a implementação do 5G será capaz de incentivar novos modelos de negócio que promovam de fato universalização do acesso a essa tecnologia ou irá apenas atender centros de alta renda e usos nos quais o ser humano, trabalhadores e cidadãos, é eliminado dos objetivos da política pública, como no caso do agronegócio. Este é apenas um dos muitos temas que não receberam a devida atenção.

Pelos motivos expostos acima, a Coalizão Direitos na Rede acredita que a implementação do 5G proposta pela Anatel e endossada pelo Tribunal de Contas da União, que ignorou os problemas apresentados por sua própria equipe técnica no relatório da SeinfraCOM, e inexplicavelmente apoiada pelo GT 5G da Câmara dos Deputados, apresenta indícios de improbidade administrativa, por causar danos aos cofres públicos, e de violações ao Marco Civil da Internet, ao aprofundar as desigualdades e comprometer políticas públicas de inclusão digital. Com isso, acreditamos que o leilão marcado para acontecer no dia 4 de novembro deste ano deve ser adiado e rediscutido, de modo a promover uma ampla revisão do edital e dos dados e métodos empregados pela Anatel, e corrigir todas as irregularidades apontadas.
 
Estamos nos umbrais de uma época que marcará transformações radicais no modo como usamos a internet, mas muitos problemas relacionados ao 5G ainda não foram devidamente tratados, como a neutralidade de rede, privacidade e segurança, e o acesso amplo da população à internet. Se de fato queremos realizar uma transformação digital efetiva, que atenda a todas as camadas da população, promovendo mudanças estruturais nas condições de acesso à internet e nas políticas de desenvolvimento tecnológico do Brasil, não podemos simplesmente leiloar de modo acelerado e a preços irrisórios um bem público valioso que são as faixas  700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz. É preciso aprofundar o debate sobre o 5G levando em consideração não apenas os benefícios à indústria, ao agronegócio, às operadoras e à população que vive em áreas que já concentram a renda, mas também como faremos essa nova tecnologia chegar à população empobrecida do país e de que modo isso pode melhorar a vida dessas pessoas.

Coalizão Direitos na Rede
Brasília, 06 de outubro de 2021
 

[1] https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/63211

[2] https://drive.google.com/file/d/1kqA31_Ntqs3gIIua7KvwnwreRUXUJUb8/view