Quando em 2019 foi aprovada a Lei 13.879/2019, que alterou a Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/97) para permitir a migração das concessões (serviços em regime público) para autorizações (serviços em regime privado), aprofundou-se o embate sobre a valoração dos bens reversíveis, entre eles o Serviço de Telefonia Fixa Comutado (STFC). Um dos mais recentes episódios que marca essa disputa foi a publicação no Diário Oficial da União (DOU de 18/01/21) da assinatura de um contrato no valor de 5.400.000,00 milhões de dólares entre a Anatel, União Internacional de Telecomunicações (UIT) e o consórcio formado por duas empresas espanholas, Axon Partners Group e Management Solutions, e pelo CPQD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações).
O objetivo da contratação é dar para a Anatel subsídios sobre os cálculos da adaptação da modalidade de outorga de serviço de telecomunicações de concessão para autorização, visando à identificação e o inventariamento patrimonial dos bens reversíveis, analisar a conformidade dos modelos de custos vigentes no processo de migração, e calcular o valor econômico associado à adaptação do regime de outorga.
Esse processo, da forma como vem sendo conduzido até agora, está eivado de inconsistências jurídicas, conforme tem sido insistentemente apontado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Tais inconsistências motivaram em 2020 uma Ação Civil Pública (ACP) no Ministério Público movida por entidades da sociedade civil que compõem a Coalizão Direitos na Rede (CDR), para a qual vem sendo aguardado um posicionamento sobre os Embargos de Declaração interpostos.
No entanto, conforme já foi assinalado pela CDR, desde a vigência da LGT os bens reversíveis tiveram um negligente controle por parte da Anatel, que só passou a tratar do tema após ser instada pelo TCU. Isso permitiu que as concessionárias, durante todo o período de vácuo regulatório promovido pela agência, alienassem o patrimônio público sem seu conhecimento. Dito de outra forma, as concessionárias chegaram a vender esses bens, que são públicos. Nem mesmo após seguidos acórdãos definidos pela justiça e pelo TCU, todos no sentido de realizar a devida caracterização e avaliação dos bens reversíveis, esse controle foi efetivado pela agência. O resultado desse relapso nas políticas regulatórias, uma função primordial da Anatel, e da judicialização em torno da valoração dos bens reversíveis é que se efetivou esta contratação de uma consultoria internacional via UIT.
Mas este imbróglio está longe de estar resolvido como faz crer a Anatel. Como ficou claro na Consulta Pública nº 5/20 e, em seguida, no decreto Decreto 10.402/2020, que estabeleceu as bases para a migração da concessão, estão configuradas inúmeras violações jurídicas que certamente serão aprofundadas nesse processo de avaliação. Dificilmente a contratação pela UIT de uma consultoria internacional pretensamente neutra poderá vir a contornar esses problemas. Vale lembrar que nossas discordâncias quanto aos procedimentos adotados na condução da migração da concessão para autorização do STFC vêm desde as conturbadas discussões em audiências públicas referentes ao PLC 79/2016, nas quais sugestões e emendas foram ignoradas, e passam pela consulta pública da Anatel, que apresentou uma visão funcionalista dos bens reversíveis, representando um prejuízo inadmissível ao erário, concedendo uma vantagem competitiva para as concessionárias e resultando em uma futura penalização da sociedade brasileira. Todos esses pontos são detalhados na Ação Civil Pública, cabendo destacar especialmente as inconsistências em todas as parcelas da fórmula do cálculo do saldo da migração.
Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar ainda dois pontos bastante importantes:
1. Na LGT e nos contratos de concessão, ficou estabelecido que todos os bens reversíveis são retornáveis à União ao final dos contratos, e que para isso uma lista desses bens deveria estar anexada aos contratos. Isto configura, o que se convencionou denominar, uma visão patrimonial dos bens. Esta visão é corroborada pelo TCU, e consta da ACP impetrada. No entanto, as concessionárias, estranhamente suportadas pela Anatel, em um determinado momento das discussões, passaram a argumentar que apenas os bens que suportam o STFC na ocasião da migração é que seriam retornáveis a União, o que configuraria o que se chama de visão funcional. Esta diferença, embora possa parecer uma filigrana jurídica, representa bilhões de reais que deixariam de ser aplicados na expansão do acesso à banda larga em áreas que carecem de infraestrutura.
2. Outro ponto, que vem sendo mantido pela Anatel, Ministério das Comunicações e empresas, mas que é injustifícável do ponto de vista jurídico, é o caso da renovação automática das outorgas das frequências. Basicamente foi item colocado de última hora nas discussões sobre a alteração da LGT para viabilizar a migração do STFC, mas que nada tem a ver com esse assunto e que confere um valor de mercado imenso às atuais operadoras que já são detentoras das frequências. A LGT claramente estabeleceu os prazos das outorgas nos leilões das frequências em nosso país, que deveriam também retornar a União ao seu final, para que fossem novamente outorgadas. A lei, portanto, estabeleceu claramente as condições de aquisição nos leilões, de forma que os pretendentes aceitassem, decidissem suas ofertas e suas participações. Ora, uma nova Lei 13.879/2019 não pode mudar essa condição, retroagindo no tempo e estabelecendo, posteriormente ao leilão ocorrido em 1998, a continuidade dessas outorgas para os seus atuais detentores, mudando a posteriori uma das condições centrais do leilão. Isto representa uma violação do ato jurídico perfeito, à coisa julgada, ao direito adquirido, e que efetivamente não segue o princípio da segurança jurídica. Afinal, o que diriam os participantes que não apresentaram na época propostas baseadas nas premissas iniciais? E como ficam os novos entrantes que não terão oportunidade de disputar a possibilidade de utilização dessas frequências?
Dessa maneira, gostaríamos de assinalar que as entidades da sociedade civil estão empenhadas em acompanhar o desenrolar dos procedimentos e da metodologia da consultoria internacional na avaliação dos bens reversíveis, bem como do pronunciamento da justiça quanto aos embargos de declaração da ACP. Esperamos também que finalmente o TCU reafirme seus posicionamentos apresentados anteriormente, para que assim esses recursos possam ser devidamente usados na diminuição das desigualdades de acesso à infraestrutura de banda larga em nossa sociedade.
DOU: https://www.in.gov.br/web/dou/-/extrato-de-contrato-299373382
Coalizão Direitos na Rede