No final de 2020 o Ministério das Comunicações (MCom) publicou o texto Retrospectiva 2020¹, elencando o que, na sua perspectiva, foram avanços no setor. Mas todos sabemos o quão prolíficos se tornam os ministérios e agências quando se trata de criar e dar nomes a programas, projetos e planos. Pouco importa se foram estabelecidas formas transparentes de acompanhamento e métricas, assim como verificação de metas e resultados das políticas. Nas análises do setor de telecomunicações, o Tribunal de Contas da União (TCU) chamou inúmeras vezes a atenção para esse problema, indicando que Anatel e Ministério das Comunicações (MCom) sempre se comportaram de forma pontual, sem darem seguimento a implementações de fôlego, no médio e longo prazo. Programas surgem e desaparecem sem que seja firmado um compromisso de longo prazo para a solução dos problemas de desigualdade regional e social no atendimento dos serviços de telecomunicações. Outro problema é que não temos visto alinhamento do MCom com a Anatel nestas diversas iniciativas apontadas na retrospectiva. O MCom menciona Wifi Brasil, Norte Conectado, Nordeste Conectado e Conecta Br. Mas não cita e parece desconhecer que a Anatel tem um diagnóstico já realizado em seu Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (PERT), no qual estão mapeados os pontos onde, em todo o Brasil, existem deficiências no desenvolvimento da banda larga. Isso é apenas uma mostra de como em 2020 o Mcom esteve mais preocupado em simplificar as regras para o funcionamento do mercado, beneficiando apenas a lucratividade dos agentes privados, que vão das operadoras de telecomunicações ao agronegócio, do que em promover políticas públicas para garantir a universalização do acesso às redes de infraestrutura que dão suporte à internet.
Nessa mesma linha, o ufanismo pela recriação do Ministério das Comunicações deve ser interpretado como uma necessidade do governo se aproximar do Centrão, e de trazer para mais perto de si o controle das verbas de comunicação (a Secom), num momento de discussão das renovações de outorgas das frequências das principais redes de TV, do que propriamente uma revalorização do setor e de reconhecimento da sua importância para a população diante do contexto da Covid-19.
Ressaltamos que, num documento que pretende traduzir, mesmo que de maneira geral, números sobre realizações e valores de investimentos, é aconselhável que presente referências, fontes ou sites onde se poderia encontrar facilmente os dados mencionados, pelo bem da transparência pública e do bom entendimento da população sobre as aplicações do orçamento.
Da mesma forma, é sempre recomendável que, no que diz respeito à legislação (FUST, IoT e Lei das Antenas), se observe que as leis são, na verdade, produto de elaboração e deliberação feitas pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, não raras com participação da sociedade civil, via consultas e audiências públicas. Tais leis não são fruto de uma ação isolada da Presidência da República realizada por meio de sanção, como deixa transparecer o texto do MCom. No caso específico do FUST, não é mencionado que ainda existem preocupações sobre como o recurso será aplicado. Com o veto presidencial sobre o dispositivo que previa a destinação dos recursos do fundo para áreas de baixo IDH, é provável que a nova lei venha a beneficiar exclusivamente o agronegócio, que tem recursos próprios para obter outras soluções de conectividade. Como resutado dessa ação do Executivo, quem sai prejudicada é a população vulnerabilizada e sem acesso à infraestrutura de banda larga, que habita as áreas rurais e o interior do país. Existem também preocupações em relação à criação e modo de funcionamento do Conselho Gestor do FUST, e ao veto sobre a obrigatoriedade de dotar todas as escolas públicas brasileiras, em especial as situadas fora da zona urbana, de acesso à internet em banda larga, em velocidades adequadas, até 2024. Já no que se refere à Lei das Antenas, o assunto não se encontra pacificado. Aguarda-se ainda o posicionamento levantado pela Procuradoria Geral da República (PGR) quanto à questão dos direitos de passagem.
Realizar afirmações em relação ao acesso à internet em capitais, do tipo “…na qual é possível acessar a internet de qualquer lugar e contratar internet de fibra ótica para qualquer endereço”, é desconhecer a realidade da composição dos acessos de fibra, constituídos de backbones, backhauls e, finalmente, dos acessos propriamente ditos (na casa dos usuários), onde sua incidência é muito pequena abrangendo apenas bairros, às vezes ruas, neste último segmento.
No tema dos atendimentos via SGDC (Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação) com VSats, que foram entregues à exploração a uma empresa estrangeira, é preciso lembrar que a ViaSat recentemente liberou a comercialização de seus acessos a preços proibitivos para atendimento de localidades que não tem outra possibilidade de solução de acesso. Dificilmente este recurso será aproveitado na sua capacidade como era a proposta original de atendimento social do satélite brasileiro. Ainda não se menciona a utilização dos diagnósticos do PERT, ou tampouco o uso dos recursos do FUST.
Na elaboração da comunicação institucional do governo federal, chega a ser um escárnio citar algo relacionado à Covid-19, quando se sabe do reconhecido negacionismo do governo em relação à doença, atitude criticada a nível internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e organizações da sociedade civil, como Human Rights Watch. Durante a pandemia, o MCom também perdeu a oportunidade de desenvolver e acelerar a implementação de uma política mais robusta de acesso à infraestrutura de banda larga nas escolas públicas, uma política que fosse mais consistente do que a simples implementação de pontos de Wi-Fi, dificultando o ensino remoto e obrigando alunos e professores a recorrerem a práticas precárias de acesso móvel e pré-pago.
Por fim, incomoda bastante que ainda não tenha sido solucionado o tema da previsão, dentro dos contratos de concessão do Serviço de Telefonia Fixa Comutada (STFC), de instalação de acessos gratuitos nas escolas urbanas (cerca de 60 mil escolas), como parte das trocas de obrigações contratuais previstas desde o Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU III), que não foram implantadas de forma adequada pelas operadoras, nem fiscalizadas pela Anatel.
O que queremos evidenciar é que há ainda uma grande carência em nosso país no atendimento dos serviços de telecomunicações, em especial no acesso à banda larga. Estamos falando de uma política que deveria ser prioridade do MCom, por se tratar, como mencionado no Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014), de um serviço essencial ao exercício da cidadania. Mas sabemos que nesse setor estamos longe de um céu de brigadeiro, ou de um mar de almirante, que a Retrospectiva 2020 do MCom faz supor.
1. Link retrospectiva 2020 MCom: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2020/dezembro/retrospectiva-2020-mostra-os-avancos-do-ministerio-das-comunicacoes
Coalizão Direitos na Rede