CDR repudia os vetos na lei que cria ANPD

Presidente da República desrespeita acordos firmados no processo legislativo e fragiliza entidade guardiã de dados pessoais

O presidente da República Jair Bolsonaro sancionou, com nove vetos, o Projeto de Lei de Conversão 7/2019 que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), alterando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

As mudanças publicadas no dia 9 de julho 2019, no Diário Oficial da União, desrespeitam todo o acúmulo de debates entre parlamentares e sociedade civil nos últimos dois anos, que resultou na construção do texto final da Medida Provisória 869/2018, aprovada em maio de 2019.

“Não apenas repudiamos os vetos que o presidente impôs a uma legislação que foi amplamente debatida por muitos meses e aprovada por consenso no Congresso Nacional, como vamos trabalhar para derrubar esses vetos e garantir que a legislação mantenha sua identidade. Ou seja, uma regra que garanta a proteção de dados pessoais do povo brasileiro e não se transforme numa lei que atenda aos interesses de empresas, que venham a usar nossos dados de forma indevida para nos manipular do ponto de vista político e econômico”, afirma Renata Mielli, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, entidades participantes da Coalizão Direitos na Rede.

Os vetos à Lei se concentram em cinco temas: 1) Decisão Automatizada — parágrafo 3° do artigo 20; 2) Lei de Acesso à informação — inciso IV do artigo 23; 3) Encarregado — parágrafo 4° do artigo 41; 4) Sanções — incisos X, XI e XII, e parágrafos 3° e 6° do artigo 52; e 5) Taxas — inciso V do artigo 55-L.

Um dos vetos mais sensíveis retira do texto da lei a possibilidade de que a pessoa natural possa solicitar a revisão de decisões automatizadas que afetam seus interesses particulares. Em resumo, ações tomadas por algoritmos na construção de perfil pessoal, profissional, de consumo ou ainda aspectos de personalidade. A medida visava oferecer mais transparência e accountability para decisões algorítmicas e garantir aos titulares dos dados a possibilidade de correção de eventuais discriminações originárias do tratamento de seus dados.

A proibição do compartilhamento de dados pessoais de requerentes da Lei de Acesso à Informação com empresas privadas também foi vetada no texto sancionado. Também foram barrados os dispositivos que previam, em caso de reincidência no cometimento de infrações por parte de empresas, a suspensão parcial por seis meses prorrogáveis por igual período das atividades de tratamento de dados ou utilização de banco de dados onde tenha ocorrido a infração e até a suspensão do exercício de atividades que envolvem o tratamento de dados pessoais.
Outro veto está na seção sobre as regras do tratamento de dados pessoais pelo poder público e isenta a necessidade do encarregado — pessoa indicada pelo controlador e operador para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e ANPD — ter conhecimento jurídico-regulatório, além de retirar a previsão de que o órgão regulamente casos em que um único encarregado seja indicado por grupo de empresas.

A lei também teve um veto sobre a cobrança de emolumentos pelos serviços prestados como fonte de eventual de recursos financeiros para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A incapacidade de cobranças por serviços da ANPD retira a possibilidade de a entidade ter, a médio e longo prazo, receita e estrutura para corresponder às demandas e necessidades que surgirão no seu funcionamento.

“Os vetos são muito graves e representam um retrocesso nas discussões travadas no Congresso Nacional, tanto na tramitação da LGPD quanto da Medida Provisória. No fim das contas prevaleceu o interesse econômico em detrimento da defesa dos direitos dos cidadãos. As discussões e os posicionamentos em audiência pública foram completamente ignorados pelo governo. E a LGPD perdeu uma grande parte da garantia de direitos que tinha originalmente”,explica Raquel Saraiva, presidenta do IP.rec — Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, entidade que compõe a Coalizão Direitos na Rede.

Vetos presidenciais desrespeitam processo democrático

A aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados, ainda em 2018, foi uma das grandes lições de democracia num processo que fortaleceu o diálogo entre diferentes setores da sociedade como empresários, academia, poder público e organizações da sociedade civil. No entanto, a Coalizão Direitos na Rede acredita que esse pacto foi rompido por influência de setores empresariais, que atuaram para prevalecer seus interesses de mercado.

O próprio texto aprovado na MP 869/2018 já contava com algumas fragilidades para a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, como a ausência de mecanismos de independência financeira e institucional, e um corpo técnico altamente profissionalizado. Os vetos, porém, aprofundam esse quadro. Além de remar na contramão do debate global sobre proteção de dados, o governo Bolsonaro fortalece segmentos privados em detrimento da segurança dos cidadãos brasileiros.

“A sociedade civil lamenta a falta de compreensão do Poder Executivo acerca da importância da proteção de dados para a garantia de direitos individuais e coletivos, especialmente no atual cenário econômico e tecnológico. Claro que a Lei de Conversão aprovada não era perfeita, mas havia ali uma síntese das discussões que envolveram diversos setores. Era fruto de negociação. Os vetos demonstram a disposição do Executivo de apenas reagir à pressão de algumas poucas empresas e seus lobistas de plantão, e ignorar a proteção aos cidadãos e consumidores brasileiros”, explica Marina Pita, relações institucionais do coletivo Intervozes, entidade que integra a Coalizão Direitos na Rede.

“Essa é uma luta que não terminou. Nós vamos começar imediatamente um amplo trabalho junto aos parlamentares do Congresso Nacional para sensibilizá-los para esse debate. E mostrar que eles aprovaram uma legislação que, ao arrepio da democracia, foi mais uma vez vetada. Nós vamos garantir a derrubada desses vetos”, complementa Renata Mielli.

O Congresso Nacional ainda tem a possibilidade de derrubar os vetos da Presidência da República e evitar essa grave regressão de direitos. A Coalizão Direitos na Rede reforça seu compromisso com os cidadãos brasileiros e espera novamente uma posição de firmeza dos parlamentares pela reconstrução do texto aprovado na MP 869/2018, de modo a resguardar os dados pessoais eletrônicos de toda a população, antes da construção definitiva da ANPD, prevista para agosto de 2020.