São Paulo, 5 de abril de 2024

O Brasil vem passando por um processo de incorporação de tecnologias digitais aos serviços públicos e privados de saúde permeado pela racionalidade neoliberal, especialmente de privatização – para além de haver problemas como os conflitos de competência entre as autoridades responsáveis pela implementação, regulação e fiscalização da saúde digital. 

Em face do projeto privatista contido na Estratégia de Saúde Digital 2020-2028 (ESD28) e na Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (Portaria GM/MS nº 1.768/21), que ameaça os princípios e diretrizes do SUS, esta carta propõe sua substituição por novos marcos participativos que fortaleçam o seu caráter público, gratuito, laico e universal. Considerando as desigualdades regionais, de classe, raça, gênero, ambientais e outros marcadores já existentes, as entidades signatárias destacam a necessidade de:

  1. Mobilização do poder estatal de investimento e compra para o desenvolvimento de infraestruturas nacionais digitais de propriedade pública, voltadas ao armazenamento e à gestão dos dados hoje hospedados em plataforma (serviço de computação em nuvem) de grande empresa de tecnologia.
    a. Incentivo à produção de estudos científicos críticos e interdisciplinares sobre o desenvolvimento da saúde digital no país, considerando questões como: interoperabilidade, avanços tecnológicos e suas aplicações. 
    b. Incentivo à produção de estudos científicos críticos e interdisciplinares sobre os impactos da saúde digital nas relações e processos de trabalhos dos profissionais de saúde.
    c. Garantia do acesso universal e conectividade significativa nos equipamentos públicos de saúde. 
  2. Auditoria popular das parcerias já estabelecidas em saúde digital (Proadi-SUS, acordos internacionais e termos de cooperação), com avaliação dos seus riscos e efetivos resultados, bem como possibilidades de descontinuação. 
  3. Vedação do uso secundário de dados sensíveis não pseudoanonimizados tratados pelo Sistema Único de Saúde por outras esferas governamentais.
    a.Priorização de um número identificador específico para o SUS (como o Cartão Nacional de Saúde, por exemplo), em detrimento do Cadastro de Pessoa Física (CPF) como identificador único no sistema de saúde. 
  4. Vedação do uso secundário de dados tratados pelo SUS pela iniciativa privada.
  5. Regulação do uso e do fluxo de dados sensíveis de saúde tratados pela iniciativa privada, com ou sem parceria com setor público.
    a. Vedação à exploração econômica de dados coletados e tratados pela iniciativa privada para finalidades distintas da prestação do serviço em saúde, incluindo análises preditivas baseadas em dados sensíveis e pontuações econômicas ou de saúde.   
  6. Regulação de aplicações voltadas à saúde e ao bem-estar.
  7. Arquivamento do processo administrativo que deu origem ao projeto “Open Health” em 2022, com a consequente auditoria da renúncia fiscal operada no desenvolvimento da proposta. 
  8. Financiamento público para a realização de projetos de extensão e pesquisas para o desenvolvimento de soluções tecnológicas nacionais atentas às necessidades de saúde, e à diversidade territorial brasileira (gênero, etnicorracial, região, classe, etc.), que informem o desenvolvimento de políticas públicas (como o Programa SUS Digital). 
  9. Elaboração de um marco regulatório para a chamada “inteligência artificial” (IA) que reconheça o caráter das soluções aplicadas à saúde como soluções de alto risco, com a aplicação das restrições decorrentes e previsão de responsabilização proporcional da cadeia de desenvolvimento, bem como revisão humana das decisões automatizadas.
    a. Consideração sobre os vieses raciais, de gênero, entre outros, na avaliação prévia da utilização de tecnologias baseadas em IA pelo setor público, com a garantia de auditorias populares algorítmicas e da base de dados que fomenta o desenvolvimento. 
    b.Participação obrigatória das populações afetadas em políticas informadas por IA.
  10. Garantia da participação representativa de(as) trabalhadores(as), usuários(as) e movimentos sociais nos processos de decisão relativos à saúde digital, considerando que os processos de participação até hoje existentes possuem caráter pro forma.
    a. Financiamento da participação social para reversão do déficit democrático nos debates da saúde digital.
    b. Estímulo a fóruns abertos, conferências livres e conselhos populares nos territórios.
    c. Apoio ao retorno da Rede Interagencial de informações para a Saúde – RIPSA.
    d. Vedação da representação institucional do setor privado em instâncias responsáveis pela elaboração de políticas que impactem a saúde digital, dada a incompatibilidade de interesses.
  11. Incentivo a articulações entre movimentos de diversos campos, como o movimento feminista, movimento negro e indígena (entre outros), bem como o conjunto dos movimentos de saúde, por meio de campanhas, projetos e ações financiadas por mecanismos como o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST).
  12. Ampliação e fomento permanente da formação crítica em saúde digital para movimentos sociais, conselhos e profissionais de saúde. 
  13. Apoio e participação na nova Câmara Técnica do Conselho Nacional de Saúde (CNS), garantindo forte representação de movimentos sociais.
  14. Apoio à inclusão do CNS no Conselho Gestor de Saúde Digital do Ministério da Saúde.  
  15. Expansão da incidência em outros espaços e conselhos, como o Comitê Gestor da Internet (CGI), o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Gestor do FUST.
  16. Priorização da saúde digital na agenda regulatória da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), reconhecendo-se a competência do Ministério da Saúde (MS) para a coordenação das políticas de saúde digital. 
  17. Implementação da Lei geral de Proteção de Dados Pessoais na saúde pelo Ministério da Saúde, observada a realização prévia e participativa de relatório de impacto à proteção de dados pessoais e: 
    a. A garantia de proteção dos dados, segurança da informação e transparência nas políticas públicas
    b. Regulamentação da responsabilização de agentes de tratamento de dados em caso de vazamentos ou outros danos, a partir da definição precisa de suas responsabilidades e da estipulação de sanções aplicáveis.
    c. A realização de campanhas informativas à população sobre a proteção e a privacidade de seus dados. 

Assinam: 

AqualtuneLab


Articulação Nacional da Enfermagem Negra-ANEL


Assembleia Popular de Saúde da Zona Oeste – APSZO


Atividade e Subjetividade (NUTAS/ PUC-SP)


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde em São Paulo


Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT/ ECA-USP)


Coalizão Direitos na Rede – CDR 


Coletivo Digital


Comitê de Defesa do Hospital Sorocabana


DecolonizAI


Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA)


Fórum Popular de Saúde de São Paulo 


Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde


Grupo de Estudos e Pesquisa Fundamentos do Serviço Social – Ética, Trabalho e Formação (UNIFESP)


Grupo de Estudos e Pesquisas Metropolitanas em Políticas Sociais e Serviço Social – GEP MEPSS (UNIFESP)


Grupo de Pesquisa CronoMarx – UNIFESP


Grupo de Pesquisa desAyiê: ferida colonial e dissolução de mundos (UFPE)


Grupo de Pesquisa História, Memória e Luta de Classes – História da Ciberguerra (UFF)


GT População Negra e Saúde Digital


Instituto Aaron Swartz | IASW


Instituto de Defesa de Consumidores – IDEC


Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social


Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN)  


Laboratório de Tecnologias Livres da Universidade Federal do ABC (LabLivre/UFABC)


NEFIPE – Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Direito (UFPE)


Núcleo de Estudos do Trabalho e Gênero – NETeG (UNIFESP)


Núcleo de Estudos e Pesquisas em Trabalho


Núcleo de Estudos em Economia, Tecnologia e Sociedade (NETS)


Núcleo Reflexos de Palmares (UNIFESP)


Pompeia sem Medo 

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