Em vista de notícias recentes1 de que o governo federal progrediu internamente no debate e elaboração de duas propostas de texto para regulação de plataformas digitais, a Coalizão Direitos na Rede (CDR) e a Sala de Articulação contra Desinformação (SAD) vêm defender a importância do Brasil avançar na instituição de instrumentos regulatórios robustos e participativos para o setor.
Em 07 de janeiro de 2025, a Meta2 comunicou uma grave inflexão em suas políticas de moderação de contas e conteúdos e o abandono de seus programas de verificação de fatos, sem demonstrar quaisquer estudos que justificassem tais medidas. Na ocasião, a Meta ainda comunicou, de maneira bastante preocupante, que iria intervir junto ao governo dos Estados Unidos para impedir avanços de qualquer iniciativa regulatória sobre seus serviços e negócios na América Latina e Europa.
O governo federal reagiu corretamente ao retomar o discurso sobre a importância da regulação das redes sociais neste momento. Porém, tal recuperação da agenda regulatória precisa ser fortalecida por meio de um amplo debate público sobre o tema e de uma melhor interlocução com a sociedade civil sobre o mérito das propostas legislativas em construção pelo Executivo. Embora reconheçamos a necessidade do tempo para formulações de entendimentos e posições internas no governo, o desconhecimento sobre os textos em elaboração prejudica as condições de contribuição da sociedade e a disputa da correlação de forças sobre a regulação.
Dentre um conjunto de questões importantes a desenvolver, preocupa em especial à CDR e à SAD a estrutura regulatória que será designada para fiscalizar e garantir a implementação das normas legais para as plataformas digitais. Frente aos desafios apresentados pelo modelo de negócios de tais empresas para a integridade do debate público e às responsabilidades e obrigações que precisam ser instituídas para o setor, é fundamental a implementação de uma estrutura institucional que possibilite a participação diversa e plural de setores da sociedade brasileira. Tão fundamental quanto é garantir neste arranjo regulatório a capacidade técnica e a autonomia funcional e administrativa para fiscalizar e implementar os comandos legais a serem estabelecidos.
A CDR e a SAD entendem, assim, que a estrutura regulatória para as plataformas digitais deve, entre outros3:
- contar com instâncias participativas para decisões estratégicas e poder para estabelecer diretrizes para o cumprimento da lei;
- realizar tarefas de supervisão em temas como avaliação de riscos sistêmicos;
- propor um modelo e avaliar a conformidade das informações apresentadas nos relatórios de transparência;
- oferecer conhecimento técnico sobre a execução da moderação de contas e conteúdos, além de conhecimento amplo acerca das múltiplas temáticas sujeitas às práticas de moderação.
Neste momento, entendemos que não há nenhum órgão ou autoridade no Estado brasileiro com estrutura instalada para fazer frente a essas tarefas4.
A Anatel tem se mostrado disposta a exercer competências de regulação das plataformas digitais. No entanto, a CDR e a SAD, em consonância com posicionamentos anteriores5, expressam direta oposição à agência para exercer tal função. Apesar do alto escalão do órgão declarar prontidão para revisão do escopo de suas competências, alegando que os objetivos estabelecidos para a agência no passado já teriam sido alcançados, a Anatel ainda não cumpriu sua tarefa mais básica: promover a universalização do acesso de qualidade à internet no Brasil.
Se a agência tem interesse em contribuir com um ecossistema digital mais saudável, democrático e inclusivo, deveria atuar observando seus deveres já estabelecidos em lei: promover condições de acesso significativo à internet para todos os brasileiros; expandir o acesso à banda larga fixa via wifi, revertendo sua recente e lastimável decisão de concessão da faixa de 6 GHz para a banda móvel; e garantir a ampliação das redes comunitárias, que fortalecem a nossa soberania digital. Hoje, a agência não é capaz de garantir que as classes CDE tenham acesso à internet ao longo dos 30 dias do mês, em razão das limitações da franquia móvel impostas pelas operadoras que a Anatel deveria regular.
Capturada pelos interesses do setor privado, a Anatel carece ainda de expertise para atuar em temas relacionados ao exercício da liberdade de expressão e à proteção de direitos humanos. Ao mesmo tempo, está longe de desenvolver suas operações considerando de fato os instrumentos de participação social criados dentro da sua institucionalidade.
No sentido contrário, seu Conselho Consultivo vem sendo sistematicamente enfraquecido em seu papel pelas barreiras impostas pela direção da agência no que diz respeito ao acesso a informações e a consideração dos posicionamentos dos/das conselheiros/as. E a agência tem se envolvido lamentavelmente em iniciativas de ataque ao modelo multissetorial e participativo de governança da Internet no Brasil, visando o enfraquecimento e até o sequestro de atribuições do Comitê Gestor da Internet (CGI,br), referência internacional há 30 anos no setor.
Tudo isso revela um quadro de profunda fragilidade sobre as reais condições institucionais – que precisam ir muito além do discurso de boas intenções – para a realização de uma reforma concreta que viabilize a Anatel assumir a posição de órgão regulador de plataformas digitais.
Considerando a necessidade do Estado brasileiro aproveitar as instituições já estabelecidas no arranjo regulatório das plataformas digitais, a Coalizão Direitos na Rede e a Sala de Articulação contra Desinformação entendem que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) se mostra como uma alternativa ao desafio de garantir uma estrutura para a implementação das futuras regulações do setor. O objeto da ANPD está diretamente conectado com os temas a serem enfrentados no estabelecimento de regras e diretrizes para o funcionamento das plataformas digitais e a autoridade deve assumir novas atribuições correlatas ao tema no marco da regulação da inteligência artificial. Ao mesmo tempo, o pouco tempo de funcionamento da ANPD coloca a autoridade num percurso mais permeável a mudanças e adaptações, fundamentais de serem concretizadas em qualquer agência já instituída que pretenda regular as plataformas digitais.
Além da ampliação de seu escopo de atuação, a CDR e a SAD consideram como condições sine qua non para que a ANPD venha a regular as plataformas digitais a ampliação de seu corpo técnico e de seu orçamento e a capacitação de seu corpo funcional em temas de liberdade de expressão e proteção de direitos humanos no discurso online. O arranjo regulatório que propomos, entretanto, precisa ir além da reforma para o fortalecimento das capacidades técnicas operacionais da ANPD.
Como afirmado anteriormente, entendemos ser fundamental a adoção de uma estrutura regulatória com fortes mecanismos de participação social, que vão além dos conselhos consultivos instituídos nas agências brasileiras – no caso, o Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD). Entendemos que o Estado brasileiro deve buscar inspiração no modelo de conselhos participativos definidores de diretrizes para políticas públicas, previsto na Constituição Federal e desenvolvido com sucesso nas últimas décadas em diversas áreas – como saúde, meio ambiente, segurança alimentar e assistência social. Tais conselhos têm papel para definir diretrizes estratégicas e avaliar o cumprimento da legislação em suas respectivas áreas.
O mesmo poderia acontecer no campo das plataformas e serviços digitais, onde uma estrutura regulatória com forte participação social seria capaz de prover freios e contrapesos relevantes quando se trata de regular práticas ligadas ao exercício de direitos fundamentais como a liberdade de expressão. Ou seja, a participação social na estrutura regulatória seria complementar aos investimentos materiais, humanos e financeiros do Estado no desenvolvimento de conhecimento e capacidades públicas próprias para tratar das questões técnicas sobre as plataformas digitais e seus sistemas algorítmicos. Seria um meio para mitigação de riscos de determinações autoritárias ou abusivas por parte do eventual órgão coordenador da estrutura regulatória.
Não seria este apenas um modelo mais adequado e já testado em diversas áreas, mas também uma forma de evitar a concentração de poder decisório na ANPD.
Hoje, porém, além de ter um caráter apenas consultivo, o CNPD tem sua composição definida mediante escolha do Poder Executivo, o que limita a autonomia de seus integrantes. Num cenário de tomada de decisões sobre diretrizes estratégicas para o setor e de supervisão sobre a implementação da lei, é fundamental que a composição de tal espaço se dê de maneira democrática e amplamente participativa – como a história dos conselhos e do próprio CGI.br nos ensina.
O Brasil é caracterizado por uma longa história de construção de espaços institucionais para fortalecimento da participação social de diferentes setores da sociedade no processo de formulação, avaliação e execução de políticas públicas. Não à toa, o atual governo federal assumiu um compromisso de colocar a participação social no centro das suas decisões.
O órgão regulador é o coração de qualquer proposta regulatória. Não podemos nos contentar com o que já está aí. Um ente enfraquecido e inoperante tornaria inócuas quaisquer obrigações trazidas pela legislação, sobretudo diante do desafio para atuar em uma matéria tão dinâmica e demandante. Temos nas mãos a chance de o Brasil ser referência internacional também neste sentido. Trata-se de um momento estratégico para avançarmos num desenho regulatório à altura dos desafios colocados pela centralidade da regulação das plataformas digitais para a nossa democracia.
- Caetano, Guilherme. 2025. Governo Lula conclui proposta para regular big techs com foco em transparência para consumidores. 08 de maio. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/governo-lula-conclui-proposta-para-regular-big-techs-com-foco-em-transparencia-para-consumidores/
↩︎ - Coalizão Direitos na Rede. 2025. Contra o retrocesso na moderação de conteúdo da Meta e os ataques à regulação democrática do espaço digital. 08 de janeiro. https://direitosnarede.org.br/2025/01/08/contra-o-retrocesso-na-moderacao-de-conteudo-da-meta-e-os-ataques-a-regulacao-democratica-do-espaco-digital/ ↩︎
- Sala de Articulação contra Desinformação. 2023. Regulação de plataformas digitais no Brasil: posicionamento de organizações da sociedade civil e entidades acadêmicas. https://salacontradesinformacao.com/wp-content/uploads/2024/05/Regulacao-das-plataformas-digitais-no-Brasil.pdf ↩︎
- Sala de Articulação contra Desinformação. 2023. Acordos mínimos pró-regulação das plataformas digitais no Brasil. https://salacontradesinformacao.com/wp-content/uploads/2024/05/Acordos-minimos-2630-pro-regulacao-de-plataformas-digitais.pdf ↩︎
- Coalizão Direitos na Rede. 2023. PL 2630: Regulação pública democrática das plataformas é fundamental, com instituições autônomas e participativas. 28 de abril. https://direitosnarede.org.br/2023/04/28/pl-2630-regulacao-publica-democratica-das-plataformas-e-fundamental-com-instituicoes-autonomas-e-participativas/
↩︎