Chico Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil, conversa com o “Nexo” sobre a melhoria do ambiente digital e a necessidade de atualização dos direitos autorais no país
O Brasil é um dos 193 países signatários do Pacto Global Digital da ONU, tratado adotado em setembro de 2024 que visa à construção de um espaço digital responsável. O texto determina que os governos criem iniciativas para ampliar o acesso à internet, a aplicação de direitos humanos e internacionais online e a governança segura de inteligência artificial.
Segundo Chico Venancio, vice-presidente da Wikimedia Brasil – movimento filiado à Wikimedia global, dona da Wikipédia, que atua pela ampliação do acesso livre a conteúdos –, os tópicos apresentados no Pacto Global Digital ainda não são aplicados no Brasil. A organização é integrante da campanha #ConhecimentoÉDireito, iniciativa lançada em fevereiro pela Coalizão Direitos na Rede que pretende ampliar o acesso público a informações na internet.
Um dos tópicos da campanha é a necessidade da atualização da atual Lei de Direitos Autorais brasileira, de 1998, a partir das transformações do ambiente digital no século 21. “A dificuldade de acesso a fontes e a diferentes obras, por exemplo, facilita o ambiente de desinformação. Principalmente porque o desinformador talvez não se preocupe com o direito autoral”, afirmou Venancio ao Nexo.
Nesta entrevista, o Nexo conversa com Chico Venancio sobre a atuação da Wikimedia Brasil e a discussão sobre a atualização da Lei de Direitos Autorais.
O que a Wikimedia Brasil faz de diferente em relação à Wikipédia?
CHICO VENANCIO: Nós somos um afiliado da fundação Wikimedia, que é a fundação que está nos Estados Unidos. Eles que têm o controle, mantêm os servidores e desenvolvem o software.
A gente atua numa posição de apoio à comunidade dentro do Brasil para desenvolver projetos que tenham a missão de desenvolver os projetos Wikimedia [mundial], de trazer o conhecimento livre.
Também há alguns concursos de criação de conteúdo, como o Wiki Loves Cultura Popular [encerrado no dia 14]. Anualmente temos eventos para adotar um estado e criar conteúdo sobre ele. Este ano é o Wiki Loves Maranhão, mas a gente já fez com a Bahia, com Espírito Santo, com o Mato Grosso, com o Pará. São projetos de apoio à comunidade que têm como missão trazer o máximo de conhecimento.
Por ser uma plataforma colaborativa, as informações presentes na Wikipédia costumam ser descredibilizadas. Como a Wikimedia procura mudar essa percepção do público?
CHICO VENANCIO: A gente teve um movimento de descredibilização mais antigo, semi-acadêmico, que afirmava que, por qualquer um poder editar, não havia confiabilidade. E a gente tem movimentos bem mais recentes de desinformação, como o Elon Musk sendo contra a Wikipédia porque ela traz as informações que ele não quer que estejam disponíveis.
Como demonstrar confiabilidade? Mostrando o nosso processo. Idealmente, toda a informação na Wikipédia deve ter uma fonte. Esse processo inteiro está aberto, é como se a redação do jornal estivesse aberta. Você pode olhar o histórico e ver a adição de fontes, quem fez, como o artigo foi construído. Tem uma ampla página de discussão em que você pode debater por que deve ser construído de um jeito, os critérios para afirmar se determinada fonte é adequada.
Há algum tempo, a gente tem trazido a academia para dentro da Wikimedia. Tem professores e universitários que trabalham com a Wikipédia em sala de aula, porque o processo de construção de um artigo enciclopédico é algo que faz sentido dentro do ensino.
O que é o “ecossistema de conhecimento livre” pelo qual vocês vêm advogando?
CHICO VENANCIO Quando a gente pensa no “ecossistema de conhecimento livre”, é desde a licença necessária para trabalhar, como a Creative Commons [que permite o compartilhamento e uso de conteúdos] e as licenças de software, mas também a construção de dados abertos.
O ecossistema inclui os diferentes atores de defesa dos direitos digitais, como bibliotecas, arquivos, galerias, museus e todas as organizações que abrem os seus acervos. Além de uma parte de criação de recursos educacionais abertos.
Em resumo, são todas as organizações que caminham junto conosco nessa ideia de reunir o conhecimento livre e disponibilizar o máximo possível.
A inteligência artificial pode impactar o acesso livre ao conteúdo digital?
CHICO VENANCIO: A IA tem um impacto, de certa forma, ainda imprevisível. A gente está lidando com uma tecnologia bem nova, que está mudando com muita frequência. Então, eu tenho dificuldade em imaginar como ela vai alterar o acesso ao conteúdo.
O que a gente vê mais imediatamente é que os modelos de IA têm uma preocupação muito pequena de atribuição e conexão com outras fontes e sítios da internet. Há um uso amplo da Wikipédia em todas as línguas nos modelos de IA, mas você raramente vê a citação dentro das respostas. Isso cria um problema porque, ao ter uma internet menos ligada, você tem um incentivo menor até da criação de conteúdo.
Sempre houve um problema de edições não construtivas na Wikipédia: você editar um verbete porque quer promover alguma coisa ou simplesmente por um vandalismo destrutivo, de retirar conteúdo ou colocar algo que não faça sentido. Os modelos de IA permitem a criação com fontes que não existem, mas que parecem ser reais, dentro do formato que seria de uma fonte real. A gente tem um problema de detectar esse vandalismo.
Um lado que talvez seja positivo é que traz uma interface que, para algumas pessoas, é mais amigável. A conversa com o ChatGPT é mais amigável do que entrar num artigo enciclopédico com um texto mais seco, menos narrativo e mais descritivo sobre aquele tema. Talvez os modelos de IA consigam trazer informação para algumas pessoas que antes não tinham esse acesso pelo formato.
Por que vocês dizem que a Lei de Direitos Autorais brasileira está desatualizada?
CHICO VENANCIO A principal questão que eu penso é que alguns usos não se adequam completamente à Lei de Direitos Autorais do Brasil. A gente pensa no uso de memes, gifs, trechos de obras que possivelmente estão infringindo a lei. E isso é algo amplamente ignorado na internet pela falta de reclamação dos detentores, até por organizações públicas e grandes corporações.
Já houve detentores de direitos autorais que foram atrás de remover todos os gifs com cenas de filmes. Ou produtores de videogame que foram atrás de desenhos que artistas fazem de seus personagens. Houve até casos de times de futebol que processaram produtores de pequenos artigos e de bolos por usarem os símbolos. A lei não está adequada a esses usos.
O que a gente pensa é que isso acaba criando uma barreira para o acesso ao conhecimento livre, que não está equilibrada com o que foi pensado para os direitos autorais. Se eles são uma forma de garantir a remuneração para atividades criativas, proibir esse uso ou criar uma insegurança jurídica sobre eles não vai favorecer essa finalidade.
O Pacto Digital Global da ONU é algo que a gente almeja alcançar, mas que ainda não está sendo aplicado. O que queremos é chamar a atenção de como os direitos autorais são parte importante dessa discussão.
As barreiras que os direitos autorais criam acabam impactando em todas as outras discussões de direitos digitais no pacto global. A dificuldade de acesso a fontes e a diferentes obras, por exemplo, facilita o ambiente de desinformação. Principalmente porque o desinformador talvez não se preocupe com o direito autoral. Mas quem está em uma posição de reduzir esse ambiente vai precisar se preocupar para não se sujeitar a uma insegurança jurídica.
Como o sr. enxerga as discussões sobre regulação das redes no país?
CHICO VENANCIO: Do ponto de vista da Wikipédia, nós temos uma preocupação em expor detalhadamente como a rede funciona. A Wikipédia foi enquadrada como uma plataforma online muito grande no processo regulatório europeu, porque está dentro dos critérios de usuários e acessos dentro da Europa.
Mas o que a gente descobriu é que os processos comunitários que a gente já tinha praticamente atendiam às demandas de regulação. Foi necessário apenas fazer um relatório que demonstrasse isso.
Ainda tem muita discussão sobre como vai ser o processo brasileiro de regulação. Infelizmente, esse processo vem se arrastando há, pelo menos, seis anos. A preocupação que a gente tem enquanto Wikimedia Brasil é que as diferentes formas de organização online sejam levadas em consideração. E é algo que eu acho que a gente tem tido sucesso.
Ao levar isso para dentro do Legislativo, nós demonstramos para os deputados e senadores que há outras formas de organização que não são só voltadas ao poder econômico, como o Meta e a Google. Quando tem uma plataforma totalmente voltada para organização voluntária, comunitária, com processos de verificação, a gente precisa ter outros critérios que permitam a continuação desse modelo.
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