A Coalizão Direitos na Rede e a Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira, em conjunto com entidades que subscrevem essa nota, expomos nossa preocupação com o sistema de vigilância utilizado pelo Poder Executivo Federal, o Córtex, e reafirmamos um compromisso inabalável com a defesa dos direitos digitais, da proteção de dados, da privacidade, assim como a expansão do aparato de vigilância massiva sustentado por tecnologias invasivas. As entidades que subscrevem essa carta compreendem que o Córtex está em desacordo com os preceitos constitucionais, legais e da segurança de informação.
Em 10 de Outubro de 2024, a Agência Pública em uma reportagem dos jornalistas Rubens Valente e Caio de Freitas expôs a plataforma de monitoramento Córtex, comandada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. O Córtex é uma ferramenta de inteligência que possibilita o acesso a câmeras em tempo real, notas fiscais, relações anuais de informações sociais, bilhetes de ônibus, cadastros de empregados, manifestos de cargas rodoviárias, restrições judiciais de automóveis, lista de pessoas expostas politicamente, entre outras informações. É uma plataforma que permite “cercos eletrônicos” por videomonitoramento e reconhecimento óptico de placas.
A reportagem da Agência Pública revela que agentes de mais de 180 órgãos públicos têm acesso à ferramenta e podem promover monitoramento de alvos, sem nenhuma obrigação de explicação ou mandado judicial. Para o MJSP, não há necessidade de explicar a motivação da vigilância, tendo em vista ser atividade de “segurança pública” e somente a suspeita de irregularidade pode levar a auditorias específicas.
O sistema Córtex e sua atual gestão representa uma violação sistemática à proteção de dados pessoais, direito fundamental consagrado no texto constitucional pela Emenda n. 115/2022 e referendado pelo Supremo Tribunal Federal. Ao permitir o tratamento de dados pessoais (entre eles potenciais dados sensíveis) sem medidas de transparência, governança de dados, segurança de informação, entre outros preceitos fundamentais, a coordenação do Córtex e órgãos estão violando de forma frontal um direito tão caro e ainda em concretização na sociedade brasileira.
Essa má gestão, inclusive, tem feito com que hackers e golpistas tenham acesso em tempo real ao Córtex, conforme comprovado em investigações da Polícia Civil do Distrito Federal que constatou que 1.453 pessoas compraram acesso ilegal ao site que espelhava o Córtex para os mais diversos fins: golpe do pix, do motoboy, da mão invisível, da falsa central de segurança do banco, do falso sequestro e golpe da portabilidade do consignado.
Ademais, é fundamental destacar que o tratamento de dados pessoais no âmbito da segurança pública não deve servir como justificativa para uma coleta massiva de dados com menos parâmetros de transparência e segurança. A natureza das atividades policiais e de Justiça Criminal exige dos agentes públicos um cuidado maior com os dados pessoais, considerando que as consequências de uma investigação criminal podem levar ao cerceamento de um dos direitos mais caros no ambiente democrático: a liberdade.
No mesmo sentido, o compartilhamento de informações sensíveis entre diferentes órgãos estatais com distintas finalidades, ao ser promovido sem os parâmetros mínimos de proteção de dados e segurança informacional, pode levar a situações de vulnerabilidade extensiva e sistemática para a população. O trânsito de dados pessoais sem respeito aos princípios da finalidade, adequação e necessidade abre espaço para arbitrariedades e perseguições. A vigilância massiva e sistemática, sem respeitos aos parâmetros mais básicos da privacidade, da proteção de dados, representa uma possível ameaça ao Estado de Direito e à dignidade dos indivíduos
Como um sistema que promove a vigilância massiva, o Córtex avança nos caminhos de potencializar a violência de Estado e repressão política no Brasil. A ferramenta cria possibilidades de perseguição a jornalistas, defensores de direitos humanos, militantes e ativistas de movimentos sociais, assim como agentes políticos em um país que vive cada vez mais violência dessa ordem. Trata-se de um país que viveu quase trinta anos de ditadura militar e que até hoje ainda não efetivou um processo de transição democrática completa, efetiva e que chegasse às reformas institucionais necessárias.
Nesse contexto, o Córtex reforça o potencial persecutório do uso de tecnologias, cuja capacidade de compartilhamento e armazenamento oportuniza violações. Nessa direção, as organizações que subscrevem esse documento concordam pela necessidade de o Governo Federal e seu Ministério da Justiça e Segurança Pública reavaliarem tanto a utilização quanto as diretrizes de funcionamento, proteção de dados, segurança informacional e transparência do Sistema Córtex.
Na defesa dos direitos mais essenciais para efetivação da democracia, não há lugar para vigilância massiva, predatória e irrestrita.
Brasília, 08 de Novembro de 2024,
Organizações que assinam a nota:
- Anistia Internacional Brasil
- Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa
- Associação Mundial de Rádios Comunitárias – AMARC Brasil
- Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira
- Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC
- Coalizão Direitos Na Rede
- Electronic Frontier Foundation (EFF)
- Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
- Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial
- Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD
- Instituto Privacidade
- Laboratório de Políticas Públicas e Internet – LAPIN
- Multiletramento Digital
- Rede Justiça Criminal
- Revista Acadêmica São Francisco