O golpe da telefonia fixa: como destruíram um serviço essencial para lucrar
A imensa infraestrutura pública de redes de telefonia fixa passa por um processo silencioso de privatização no país
Marcelo Saldanha e Flávia Lefèvre
A degradação artificial das concessões de telefonia fixa no Brasil constitui um exemplo alarmante de como políticas públicas podem ser manipuladas para favorecer interesses corporativos em detrimento do bem comum e dos direitos garantidos na Constituição. O desinteresse pelo serviço de telefonia fixa tem sido usado como uma justificativa falaciosa para que o Estado abra mão da titularidade de uma infraestrutura que, segundo o Artigo 21, inciso XI da Constituição Federal, deve ser mantida pública, sob responsabilidade da União.
Essa degradação não apenas compromete os direitos dos milhões de brasileiros que ainda dependem da telefonia fixa, especialmente em áreas vulneráveis, mas também ameaça a soberania nacional. A robusta infraestrutura, que inclui redes de transporte e de acesso subterrâneas, poderia ser utilizada para a universalização do serviço de internet de alta qualidade – essencial para a sociedade moderna.
Embora o Poder Executivo, conforme o artigo 18 da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), tenha a prerrogativa de alterar o regime de prestação dos serviços de telecomunicações, isso não implica na renúncia da titularidade da infraestrutura pública. No entanto, o processo atual parece favorecer corporações financeiras ao transferir tanto a infraestrutura quanto a carteira de clientes para a iniciativa privada, contrariando o interesse público e comprometendo a soberania tecnológica do país.
A transferência dessa infraestrutura crítica para o setor privado, em um contexto de crescente dependência tecnológica e infraestrutura internacional, vai contra os discursos oficiais que defendem maior independência e soberania tecnológica. Transferir essa titularidade para entidades privadas, como o BTG Pactual, Oi e Vivo, cria uma dependência de interesses privados, que podem não estar alinhados com os objetivos de universalização de serviços essenciais, como o acesso à internet fixa de qualidade, comprometendo ainda mais a realização desse direito.
Os dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) evidenciam que o processo de migração das concessões de telefonia fixa para o regime de autorização está longe de ser uma mera consequência do avanço tecnológico. Trata-se, na verdade, de uma degradação planejada, cujo objetivo é retirar o serviço de regime público para entregá-lo ao controle de grandes conglomerados privados, como a Oi, a sua subsidiária V.Tal e um de seus maiores acionistas, o banco BTG Pactual, facilitando a apropriação de bilhões de reais em recursos públicos.
Para reforçar essa degradação artificial, os dados coletados da Anatel e do Sindec (Senacom) mostram altos índices de reclamações dos usuários, especialmente contra a Oi. Além disso, denúncias e relatos de conselheiros de usuários da Oi e da Vivo apontam problemas como o desligamento unilateral de serviços, baixa qualidade na telefonia fixa e a imposição de migrações obrigatórias para operadoras privadas ou situações onde os usuários não têm muita escolha, como no caso da venda da Oi Móvel para TIM, Claro e Vivo. Esses fatores foram determinantes para a redução do número de usuários do STFC no regime público, favorecendo a migração para o regime privado.
Um dos principais pontos de crítica é a total falta de controle sobre os bens reversíveis – bens que pertencem ao Estado e deveriam retornar à União ao final das concessões. Desde 2005, o TCU vem cobrando da Anatel a revisão e validação desses bens, mas o órgão regulador falhou repetidamente em cumprir seu papel. Ao invés de realizar auditorias externas anuais, a Anatel permitiu que as concessionárias autodeclarassem o valor e a quantidade desses bens, sem qualquer verificação independente. A consequência? Um verdadeiro festival de alienações e desvalorização patrimonial, com a Oi divulgando a venda de mais de 7,9 mil imóveis da concessão do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC).
Em 2015, a Anatel estimou que o valor dos bens reversíveis das concessionárias somava R$ 121,6 bilhões. No entanto, em uma manobra questionável, a mesma agência revisou esse montante para R$ 22,6 bilhões em 2023, um corte de quase 75%. Não há explicações plausíveis para essa desvalorização abrupta, que só beneficiou as concessionárias em seus processos de migração para o regime privado.
A Oi, uma das principais envolvidas devido sua área de concessão corresponder a 95% do país, conseguiu aprovar um acordo com o TCU em 2024 que reduziu ainda mais o valor de seus bens reversíveis, de R$ 101 bilhões para apenas R$ 5,8 bilhões. O acordo, que aguardava aprovação da Advocacia Geral da União (AGU), foi selado no último dia 27/09/24 sem a validação da avaliação dos bens pela metodologia da Anatel, conforme exigido pelo Acórdão 516/2023 do TCU. Ou seja, a concessão foi desvalorizada artificialmente, garantindo que a migração para o regime privado acontecesse sob condições extremamente favoráveis às empresas envolvidas, enquanto o país perde bilhões de reais em ativos públicos que, pela lei, deveria reverter em investimentos “priorizando a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades” (art. 144-B, § 3º).
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