Segundo dados da pesquisa realizada em 2021 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), no Brasil 93% de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos de idade, usam a Internet. E nesse mês de outubro para nos conectarmos com o clima do Mês das Crianças, por conta do dia 12 de outubrom, resolvemos debater com mais profundidade sobre Infância, adolescência e direitos digitais.
Para encerrar a campanha que problematizou a presença de crianças e adolescentes na internet e cruzou os direitos delas com os direitos digitais, ouvimos duas pesquisadoras especialistas sobre o público nos ambientes digitais.
Mariana Canto é diretora do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife-IP.rec no Brasil e doutoranda em Direito pela Universidade de Stirling,no Reino Unido, onde faz parte do grupo interdisciplinar sobre Democracia, Direitos Humanos e Advocacy na Era Digital. Já Marina Meira é pesquisadora sênior da DataPrivacy Brasil, mestranda em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp e graduada pela Faculdade de Direito da USP. E é membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP, onde coordena o grupo de trabalho em Infância e Dados.
Confira, a seguir, a entrevista completa com as pesquisadoras:
CDR- Quais os principais perigos que as crianças correm quando usam a internet sem supervisão dos pais ou responsáveis?
Mariana Canto (IP.rec) -O cyberbullying e crimes como aliciamento e divulgação de material de abuso sexual infantil são uma das principais preocupações de especialistas na área de segurança digital atualmente. Por isso, é importante que responsáveis estimulem o diálogo com as crianças, ressaltem a importância da privacidade e proteção de dados online (até mesmo dando o exemplo e sendo cuidadosos com os seus dados) e supervisione o uso da internet a partir de uma abordagem dedicada à informação e à preservação da saúde física e psicológica das crianças.
Marina Meira (DataPrivacy Brasil) – A OCDE possui uma tipologia que classifica os riscos a que crianças e adolescentes estão expostos na Internet em quatro categorias. A primeira delas são os riscos de conteúdo, que envolvem a exposição a discurso de ódio, desinformação e a conteúdos danosos, como pornografia, ou ilegais, como certos tipos de apostas. A segunda categoria são os riscos de conduta, advindos de situações nas quais crianças e adolescentes interagem entre si na Internet. Seriam exemplos desses riscos o cyberbullying e, a depender do contexto e da própria faixa etária, o sexting. A terceira categoria são os riscos de contato, vindos de interações entre crianças e adolescentes com adultos no ambiente digital. Nessa categoria entram aliciamento e chantagem. A quarta categoria, por fim, é a de riscos de consumo, que inclui golpes aplicados na Internet e o uso de dados de crianças e adolescentes para o direcionamento de publicidade.
Há duas coisas, porém, que são muito importantes de serem consideradas quando pensamos nos riscos a que crianças e adolescentes estão expostos na Internet. A primeira delas é que a responsabilidade de protegê-los desses riscos não cabe apenas às suas mães e pais. Pelo contrário, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que a responsabilidade por proteger e promover os direitos de crianças e adolescentes é compartilhada entre família, Estado e toda a sociedade, o que inclui atores como escolas e as empresas que operam produtos e serviços digitais. Seria injusto colocar todo o peso da responsabilidade por proteger crianças e adolescentes na Internet em suas mães e pais, especialmente num cenário em que a relação entre indivíduos e plataformas digitais não é nada horizontal.
A segunda coisa que não podemos deixar de lembrar é que, apesar dos riscos envolvidos no uso da Internet, o ambiente digital também pode ser um espaço que traz muitas vantagens a crianças e adolescentes. Por meio da Internet, os mais jovens podem se divertir, aprender, conhecer mais sobre seus gostos e interesses e interagir com suas comunidades, por exemplo. É sim muito importante identificar e conversar a respeito dos riscos online para crianças e adolescentes, mas vale sempre mantermos em mente que eles já estão na Internet: a pesquisa TIC Kids Online nos diz que 92% das pessoas entre 9 e 17 anos no Brasil é usuária da Internet. É dizer, a Internet faz parte de nossa sociedade hoje e pode ser facilitadora de direitos, então devemos lutar pela proteção dessas pessoas na Internet – e não da Internet.
CDR – Que tipo de medidas os adultos – responsáveis pelas crianças -podem adotar como medida de contenção de danos, por exemplo, sobre otempo de tela que as crianças são submetidas hoje em dia?
Mariana Canto (IP.rec) – Eu diria que o acesso à informação ainda é a melhor forma de proteger as crianças no ambiente online. Em relação ao tempo de tela é importante saber dialogar e negociar intervalos e encorajar atividades longe das telas desde a inserção do indivíduo no ambiente digital. A respeito dos possíveis perigos no ambiente online, o diálogo aberto, a informação e a desmistificação de questões são essenciais. Pais, mães e responsáveis devem principalmente tomar cuidado com o impacto que podem gerar ao expor crianças na Internet. Evitar o compartilhamento da rotina da criança, de imagens da criança sem roupa ou a exposição não autorizada são algumas possíveis medidas a serem tomadas. É importante lembrar que o direito à privacidade é um direito fundamental e que as crianças, apesar de ainda serem dependentes dos seus cuidadores, são sujeitos de direitos plenamente formados.
Marina Meira (DataPrivacy Brasil) – Um ponto bastante importante quando pensamos na proteção de crianças e adolescentes, seja na Internet ou fora dela, é considerar que, dentro da categoria “crianças e adolescentes”, existe uma infinidade de nuances. As experiências que determinado jovem terá no ambiente digital e, consequentemente, os riscos a que vai estar exposto, vão variar de acordo com uma série de fatores – desde sua faixa etária, até seu gênero, raça, classe, local de residência, e muitos outros. Pensando nisso, a primeira questão que podemos estabelecer é que não há recomendações absolutas ou generalizáveis para promover a proteção de crianças e adolescentes na Internet. O ideal é sempre considerar o contexto e as demandas daquele jovem ou grupo de jovens e dialogar ativamente com eles para que possam sentir que têm um espaço de confiança, onde serão escutados, e ao qual podem recorrer caso se sintam inseguros.
Dito isso, há recomendações específicas sobre tempo de exposição a telas, que variam conforme a faixa etária. A Sociedade Brasileira de Pediatria, por exemplo, aconselha que, idealmente, bebês de até 2 anos não tenham nenhum contato com telas, e crianças de 2 a 5 anos passem até 1 hora por dia frente a dispositivos. Para todas as idades, é recomendado intercalar momentos conectados a momentos de desconexão, sobretudo de brincadeiras ao ar livre, quando possível. Sabemos, porém, que a restrição do tempo de tela pode ser um grande desafio para as famílias, e isso acontece inclusive porque as principais plataformas digitais possuem um design que estimula o vício e engaja os usuários de forma constante e prejudicial. Daí, mais uma vez, a importância de cobrar de todos os atores da sociedade, além das famílias, que atuem para promover uma Internet que proteja crianças e adolescentes.
A forma como são desenhadas essas plataformas digitais, especialmente as redes sociais, também nos estimula a publicar conteúdos sobre nossas vidas, muitas vezes de momentos íntimos delas. Uma dica para adultos, nesse sentido, é refletir sobre quais imagens e informações compartilhar a respeito de crianças e adolescentes do seu convívio. Por vezes, uma foto que parece inocente ou fofa pode levar a consequências indesejadas. É o caso, por exemplo, de uma foto de uma criança no banho, sem roupas. Aqui, pensando na publicação de fotos, além de refletir sobre o que aquela imagem diz e em quais situações ela pode colocar a criança ou adolescente no futuro, vale conversar com o jovem envolvido e perguntar se ele se sente confortável com o compartilhamento do conteúdo, caso já tenha uma maior compreensão do que aquilo significa.
CDR – Quais os principais cuidados digitais que podem ser adotados nos apps e dispositivos utilizados pelas crianças?
Mariana Canto (IP.rec) – É importante lembrar que dispositivos conectados podem conter falhas de segurança que geram riscos para usuários como um todo. No caso das crianças, dispositivos como câmeras de monitoramento como babás eletrônicas, smartwatches, assistentes virtuais, e brinquedos, podem ser capazes de enviar dados para a nuvem, incluindo dados sobre saúde, localização e gravações de voz e imagem. Dessa forma, é importante estar atento às permissões concedidas nestes dispositivos e aplicativos como também aos termos de uso e políticas de privacidade dessas empresas. Também recomendaria uma pesquisa acerca do histórico daquele produto ou fabricante. Caso falhas de segurança ou escândalos relacionados a vazamento de dados já tenham sido publicizados, podemos enxergar aí um sinal vermelho.
Marina Meira (DataPrivacy Brasil) – Há duas principais questões que eu gostaria de mencionar aqui. A primeira é sobre termos de uso e políticas de privacidade que todos os serviços e produtos digitais devem ter. Esses textos devem descrever que tipos de dados dos usuários extraem e como utilizam esses dados. Além disso, devem indicar quais práticas de segurança da informação adotam, entre outras questões. Antes de instalar um aplicativo no dispositivo de uma criança ou adolescente, então, é interessante avaliar esses termos de uso e política de privacidade. Mais uma vez, porém, um parênteses: esses instrumentos, muitas vezes, são redigidos em linguagem técnica de difícil compreensão. Assim, ainda que seja recomendável que as famílias compreendam o que está descrito nesses textos para que crianças e adolescentes não utilizem aplicativos que possuem práticas injustas ou inseguras (como seria a coleta de dados para direcionamento de publicidade, por exemplo), é essencial que as empresas que operam na Internet adotem práticas responsáveis, de acordo com as leis brasileiras.
A segunda questão é sobre os aplicativos de controle parental, que são frequentemente apresentados como opção às mães e pais para promoção da segurança de crianças e adolescentes na Internet. Tratam-se de mecanismos que permitem que adultos responsáveis controlem o acesso que crianças ou adolescentes possuem a sites, aplicativos e dispositivos como um todo. Esses mecanismos, além de permitir bloquear o acesso a determinados tipos de conteúdo, podem permitir também a restrição do tempo de uso de telas.
Seu uso é, sim, uma possibilidade, mas deve vir acompanhado de algumas reflexões. A primeira é que crianças e adolescentes têm direito à privacidade e precisam ter espaços de experimentação para descoberta de suas personalidades. Há pesquisas que indicam que crianças e adolescentes sujeitos ao uso de aplicativos de controle parental, ao se sentirem vigiados, se afastaram de seus responsáveis e deixaram de dialogar sobre suas preocupações em relação à Internet. Isso significa que mecanismos de controle parental poderão, em alguns casos, ser úteis em apoiar mães, pais e responsáveis legais na mitigação dos riscos a que seus filhos estão expostos na internet, mas devem ser utilizados de acordo com a faixa etária da criança ou adolescente, sempre de modo a permitir que ele desenvolva progressivamente sua autonomia.
Outro ponto a ser considerado é que os mecanismos de controle parental, em geral, terão acesso a muitos dados sobre a criança ou adolescente monitorados. Muitos, por exemplo, além de acesso a mensagens e redes sociais, monitoram de forma persistente a localização da criança. Assim, se essas informações forem objeto de um incidente de segurança e acabarem nas mãos de pessoas mal intencionadas, poderão sujeitar a criança ou adolescente a perigos online e offline. Além disso, há pesquisas que apontam que muitos aplicativos de controle parental utilizam os dados que coletam sobre seus usuários para traçar seus gostos e preferências e, a partir disso, enviar-lhes publicidade comportamental – ou seja, publicidade que vai de acordo com esses gostos e preferências. Crianças e adolescentes são pessoas em formação, mais sujeitos a pressões de consumo e, portanto, mais suscetíveis a esse tipo de exploração comercial.
CDR – Você tem dica de app, site, perfil nas plataformas digitais ou outro, que possa facilitar esse processo de proteção de dados das crianças?
Mariana Canto (IP.rec) – O controle parental é uma ferramenta que pode ser utilizada na proteção de crianças em certos ambientes conectados à rede, como é o caso de sistemas operacionais, sites e equipamentos, como roteadores e consoles de jogos. A ferramenta pode já estar presente no dispositivo ou ser adicionada por meio de aplicativos pagos ou gratuitos.
Marina Meira (DataPrivacy Brasil) – Algumas organizações da sociedade civil têm promovido um trabalho bastante importante na conscientização das famílias sobre um uso saudável da Internet por parte de crianças e adolescentes. Destaco aqui o programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, e a SaferNet. As duas podem ser acompanhadas nas redes sociais (@criancaeconsumo e @safernet). Também indico os conteúdos do pediatra Daniel Becker (@pediatriaintegralbr, no Instagram).
CDR – Você teria uma indicação de artigo ou texto que aborde a questão da importância de proteger os dados das crianças na internet?
Mariana Canto (IP.rec) – Em breve, o IP.rec estará lançando a tradução para o português do relatório “Privacidade e Proteção: uma abordagem dos direitos da criança à criptografia” realizado pelo CRIN – Child Rights International Network (CRIN) e o defenddigitalme. O documento é uma fonte riquíssima de informações e traz uma perspectiva protetiva e garantista dos direitos da criança e dos adolescentes. Não menos importante, indico também os materiais do CERT.br, Safernet e CRIN (em inglês) que vem realizando um extenso trabalho em relação à proteção dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente online.
Marina Meira (DataPrivacy Brasil) – Tenho muitas! Aqui algumas, em formatos diferentes: os episódios “Pode trocar esse presente?” e “Como está a proteção digital das crianças no Brasil”, do Dadocracia, podcast da Data Privacy Brasil. O primeiro conta com entrevista da Maria Mello, e o segundo do João Aguiar, os dois do Instituto Alana. Também o guia interativo A Escola no Mundo Digital, iniciativa do Instituto Alana, Intervozes e Educadigital, que discute a importância da proteção de dados de crianças e adolescentes no contexto escolar. E, por último, os materiais produzidos pelo CGI.br para adolescentes, como a cartilha Internet com Responsa.
Sugestões de conteúdo: