Julho das Pretas e Direitos Digitais

Entrevista com Clarissa França fortalece a importância da luta das mulheres negras pelo acesso à saúde digital

 A saúde digital é um conceito e prática voltada ao uso das tecnologias digitais para auxiliar o acesso à saúde. Está incluso os serviços oferecidos pelo SUS e pela rede privada, além incluir os avanços tecnológicos mais recentes como a Internet das Coisas, inteligência artificial, big data e robótica e outros.

Apesar dos avanços na tecnologia, que viria a possibilitar mais caminhos para o acesso e a garantia do direito à saúde para todas, todes e todos, as desigualdades sociais existentes no país não permite que segmentos mais vulneráveis da sociedade consigam alcançar esses direitos.

No conjunto de leis já existentes, como a LGPD por exemplo, que garantem os nossos direitos em relação a privacidade e proteção de dados, a regulamentação das plataformas e do uso da inteligência artificial, ainda não estão definidas, ou seja são projetos de leis em tramitação. É preciso avançar nessas legislações e diretrizes nacionais para governança digital: seja para acesso ou para tratamento e armazenamento dos nossos dados em saúde.

Contextos sociais como a pandemia evidenciaram que mulheres negras e a população em geral, foram os grupos mais afetados pela falta de acesso, resultado de violências que seguem aprofundando as mazelas sociais, como o racismo, o machismo, a LGBTfobia e outras opressões correlatas. Diante dessa realidade, convidamos vocês para conversar sobre o assunto, e com a palavra a companheira Clarissa Marques França, advogada, codiretora do Aqualtune Lab e integrante do Conselho Administrativo da CDR.

CDR: Como você vê a saúde digital no Brasil para a população negra e mulheres negras? É importante um diálogo entre os direitos digitais e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra? 

Clarissa França: A saúde digital é a aplicação de tecnologias para garantir mais acesso a saúde, é uma oportunidade de consolidar o SUS e de promover saúde através do uso das tecnologias. No entanto, tem uma parcela da sociedade que vê a tecnologia na saúde como um negócio, como uma forma de lucrar e ganhar dinheiro, fornecendo tecnologia para o SUS que não vão necessariamente auxiliar no tratamento das questões que passam por acesso, por ampliar atendimento, por mais saúde. Então a gente está vivendo um momento em que podemos definir qual é a nossa prioridade, se a nossa prioridade com essas tecnologias é ampliar o SUS e dar mais acesso, ou investir em uma tecnologia que vai criar mais dependência, tanto econômica quanto cultural e não promover a nossa soberania digital? É preciso investir em produção de tecnologias próprias que entendam a realidade do Brasil e a forma como o país e principalmente a população negra precisa. É necessário ampliar e aprofundar essa política pública que é o SUS. Esse diálogo entre a saúde digital e a população negra é essencial, entender que a política de saúde digital, digitalização dos meios de saúde, informatização das informações, ampliação dos meios de tecnologia é fundamental para promover a questão da saúde pública. Então hoje a gente sabe que qualquer desenvolvimento e ampliação dos serviços públicos vai precisar de tecnologia, então a saúde da população negra tem sido pautada, tem sido implementada ao longo desses anos, e vai precisar do uso dessas tecnologias

CDR: Quais os problemas atuais sobre a saúde digital e a proteção de dados, considerando que as populações mais vulneráveis não têm acesso à informação?

Clarissa França: Entre as primeiras preocupações sobre a questão da saúde digital é a falta de preocupação com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). A estratégia não observa a lei e precisa ser revista nesse sentido, porque tem permitido o compartilhamento de dados com o setor público e privado e na nossa visão é uma questão que tem que ser vedada, a gente precisa avançar nesse sentido. Em relação a população brasileira, na verdade todos somos vulneráveis, a população negra ainda mais, então como os dados de saúde por serem tão sensíveis, sigilosos, eles não podem ser tratados da mesma forma que outros tipos de dados, a lei já faz essa diferenciação. E trabalhar com o conceito de vulnerabilidade que tá implícito na condição humana, é essencial para cobrar dos governos políticas que proteja a população, já que somos vulneráveis. A gente precisa entender que a questão da vulnerabilidade não vai ser superada só com acesso a informação, porque existe uma desigualdade estrutural nessa formação, então as empresas sempre vão ter mais condições de pautar as questões de dados, de influenciar, de construir, do que o cidadão. Então já temos essa experiência de entender a vulnerabilidade como estrutural nessa relação no código do consumidor, que a vulnerabilidade é uma característica intrínseca na relação do consumo, então em relação aos dados essa vulnerabilidade não vai ser superada porque não é só uma questão de informação, porque a tecnologia já é pensada a partir do pressuposto que nós somos vulneráveis

CDR: Sabendo como as mulheres negras ainda sofrem com a negação do Estado em relação aos direitos reprodutivos, qual a importância de ter a proteção desses dados, em um cenário de criminalização das mulheres e corpas negras?

Clarissa França: É importante porque os dados podem ser usados para perfilização e mapeamento, podendo sim aumentar a violência contra as mulheres, principalmente as mulheres negras que são mais vulneráveis.

CDR: Qual a mensagem que você deixa para as mulheres negras em relação a proteção dos seus direitos dentro e fora da internet?

Clarissa França: O recado que eu deixo é que a gente precisa ter um olhar sobre isso, sobre a questão dos dados e a violência contra as mulheres negras na internet, porque tem aumentado e a sociedade brasileira não tem conseguido dar conta dos problemas que isso vem gerando, e a tendência é a escalada dessa violência, precisamos enquanto organização e enquanto mulheres que militam, ter dentro do nosso espectro de análise estratégica que essa é uma variável que será cada vez mais aprofundada, a questão da violência e da utilização dos dados em desfavor das nossas prioridades. Então eu acho que precisamos incorporar essa discussão enquanto movimento organizado nas nossas reflexões e aí fundamentar para traçar nossas estratégias.

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