NOTA TÉCNICA pela suspensão da tramitação precipitada em regime de urgência do PLO 0376/ 22 da Câmara Municipal de Fortaleza

Brasília, 26 de Outubro de 2022

A Sua Excelência

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Fortaleza
Vereador Antônio Henrique da Silva

Aos cuidados da presidência da Câmara dos Municipal de Fortaleza

Assunto: Posicionamento da sociedade civil organizada pela suspensão da tramitação, em regime de urgência, do Projeto de Lei Ordinária 0376 de 2022 na Câmara Municipal de Fortaleza, que dispõe sobre política de videomonitoramento demasiada ampla e genérica, possibilitando inclusive o uso de tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública.

Estimado Senhor Presidente da Câmara Municipal de Fortaleza,

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) é uma rede de entidades que reúne 52 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação a defesa do acesso, liberdade de expressão, proteção de dados pessoais e privacidade na Internet. As entidades que integram o coletivo participaram ativamente da construção de políticas públicas de Internet de grande relevância para o Brasil, como o processo de discussão e elaboração do Marco Civil da Internet e de seu decreto regulamentador, bem como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). 

A CDR vem, perante a presidência desta casa legislativa, se posicionar contrária à tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei Ordinária nº 0376/22 na Câmara Municipal de Fortaleza, que pretende estabelecer política de videomonitoramento em Fortaleza para fins não expressamente determinados, que vão desde segurança pública à gestão urbana, à saúde, “dentre outros”1. O PLO foi proposto no dia 18 de outubro, aprovado pela Comissão de Conjunta de Constituição e Orçamento no dia 20 de outubro e enviado para votação em plenário no mesmo dia, sem sequer abrir espaço para a manifestação da sociedade civil organizada, especialistas e movimentos sociais. 

A utilização de videomonitoramento e outras tecnologias como forma de potencializar políticas públicas, buscando colaborar na gestão de agendas que vão desde o tráfego urbano até a segurança pública é uma tendência observada em vários programas de governo a nível estadual e municipal no Brasil e no mundo. Não há, a priori, oposição ao emprego de ferramentas que possam vir a otimizar tais processos. Por outro lado, a proposição trata de uma política de longo prazo e sobre um tema que, apesar de ser considerado novo, já tem sido objeto de alerta devido aos possíveis impactos adversos aos direitos fundamentais. Por isso, é inconcebível que uma proposição legislativa com riscos para os direitos fundamentais não seja objeto de debate público.

É fundamental e urgente que qualquer iniciativa legislativa envolvendo o tema do PLO 0376/22 – tendo em vista seu caráter amplo e a possibilidade de gerar impactos negativos em relação à garantia de direitos, o que é especialmente sensível quando temos em vista populações já alvo de preconceitos, como por questões de territorialidade e raça –  seja previamente discutida de maneira ampla pela sociedade, incluindo movimentos sociais, especialistas e possíveis atingidos. Por isso é recomendável que a utilização de tecnologias, especialmente de reconhecimento facial, seja específica e não recaia sobre setores sensíveis.  

Partindo destas preocupações, apresentamos nesta Nota Técnica considerações sobre o PLO 0376/22, com a solicitação de que tal proposição legislativa siga rito passível de acolher sugestões dos mais diversos setores da sociedade,  atentando-se para os direitos consagrados na Carta Magna e o sistema normativo brasileiro afeto, por exemplo,  à privacidade e à proteção de dados pessoais. 

É importante destacar que especialistas mundo afora têm chamado atenção e buscado incidir para sanar os riscos contidos nestes usos, com destaque para as violações decorrentes da hiper-vigilância e da segregação de grupos sociais historicamente vulnerabilizados. Por tal preocupação, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu, em 2021, a imposição de uma moratória sobre a venda e uso de alguns sistemas de inteligência artificial (IA), como o reconhecimento facial, até que sejam ativadas garantias para proteger os direitos humanos. No caso do projeto em discussão na Câmara Municipal de Fortaleza, não estão detalhadas quais tecnologias serão utilizadas, mas houve a inclusão, por emenda, da autorização para uso de reconhecimento facial – sendo este um dos pontos do projeto que nos preocupa.

Em outros momentos2, diversas entidades se manifestaram sobre políticas propostas no Ceará e em Fortaleza com o mesmo caráter, alertando para a inconstitucionalidade das propostas, que apresentavam os mesmos problemas vistos no PLO 0376 de 2022. Com as mesmas preocupações expostas antes, voltamos a nos manifestar a favor do caráter complementar dos direitos humanos, que deve ser observado na utilização de tecnologias.

Ao observar o PLO 0376/22, a Coalizão Direitos na Rede chama atenção das autoridades para os seguintes pontos que deverão ser objeto de debate durante o curso de tramitação da proposição legislativa:

  1. O PLO em questão deixa de observar mandamentos claros da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em destaque, o artigo 6° da LGPD   prevê a observância da boa-fé e de dez princípios explicitados no texto, entre os quais destacam-se: a) finalidade – tratamento dos dados para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular; b) necessidade – limitação do tratamento ao mínimo necessário; c) livre acesso – garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; e d) segurança – utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais contra acessos não autorizados e contra situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão. 
  1. O PLO ainda deixa de observar os fundamentos da disciplina nacional de proteção de dados positivados na LGPD, quais sejam: I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
  1. A escolha do PLO por não prever de forma clara os princípios, fundamentos e direitos dos titulares de dados é ainda mais grave em se tratando de política de videomonitoramento, já que o tratamento de dados advindo da política pública proposta pode revelar dados sensíveis dos cidadãos. Ora, a imagem de um indivíduo pode vir a revelar origem racial ou étnica, convicção religiosa e opinião política. Inclusive, as imagens podem vir a ser tratadas por tecnologias de inteligência artificial que permitam traçar a biometria facial dos cidadãos: o famoso reconhecimento facial, considerado dado sensível pela LGPD. Tudo isso é ainda intensificado quando se trata de ampla vigilância em espaços públicos e em tempo real. Recomenda-se, portanto, que a política preveja o banimento do uso das tecnologias digitais de Reconhecimento Facial na Segurança Pública em razão dos perigos patentes aos Direitos Fundamentais à privacidade e à proteção de dados, motivos já notadamente expostos por especialistas em tecnologias digitais e direitos humanos na Carta da Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira.
  1. Embora destaque-se a relevância da iniciativa de criação da Política Municipal de Videomonitoramento de Fortaleza, é preocupante o caráter genérico da proposta, que aponta para a utilização de videomonitoramento para diversas áreas, do trânsito à segurança pública, as quais possuem especificidades que não são consideradas no texto, conforme fica explícito no Capítulo 1 parágrafo 3º.  É mister que a política detalhe sobre cada um dos usos e observe a Lei Geral de Proteção de Dados no que tange à proporcionalidade e necessidade.
  1. Daí que causa preocupação que a Política Municipal proposta não verse sobre como se dará o tratamento e a guarda de dados retidos nas atividades de videomonitoramento. A política deve endereçar de maneira expressa como será gerenciada a base de dados, quem terá acesso às imagens e como fará o tratamento e a guarda destes dados.
  1. Há que se destacar também a ausência de mecanismos de transparência quanto à coleta e ao uso desses dados, o que deverá ter impacto negativo direto sob a base principiológica da LGPD. Ainda neste ensejo, a política deve observar a necessidade de prestação de contas.
  1. Por se tratar de matéria de alta relevância e com potencial impacto em diversos âmbitos da cidadania, recomenda-se a inclusão, na estrutura de governança da PMV,  de especialistas e da sociedade civil, garantindo a necessária participação social na gestão da Política para além dos órgãos do poder público implicados. 
  2. Por fim, cumpre salientar ainda que a tramitação em regime de urgência da proposta de Política Municipal de Videomonitoramento fere o Estatuto da Cidade, que estabelece que a política urbana deve ter entre suas diretrizes: Art. 2°, II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; Art. 2°, XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população.

A Coalizão Direitos na Rede reitera, portanto, a preocupação e a recomendação de revisão da proposta, a partir de uma tramitação que respeite o processo democrático,  havendo o necessário diálogo com a população em geral, e particularmente, com organizações da sociedade civil, especialistas e atingidos, que poderão contribuir para que a política observe os direitos e questões tratadas nesta nota.

1 PLO 0376/2022, art. 1º, §3º.
2 https://direitosnarede.org.br/2020/09/04/nota-sobre-projeto-de-videomonitoramento-no-ceara-e-em-defesa-de-maior-debate-publico/

Atenciosamente, 

Coalizão Direitos na Rede

Abaixo, disponibilizamos para consulta rápida alguns links com conteúdos concernentes:

Em relação à política de videomonitoramento no Ceará

Em relação à proposição de reconhecimento facial em Fortaleza

Em relação ao banimento do reconhecimento facial na segurança pública:

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