Lançada por mais de 30 organizações no FIB 12, #TireMeuRostoDaSuaMira propõe debates e ações para barrar o uso dessas tecnologias por parte das polícias brasileiras, que perpetuam o genocídio da população negra e a criminalização da pobreza
Após o lançamento da campanha #TireMeuRostoDaSuaMira na 12ª edição do Fórum da Internet no Brasil (FIB), no dia 31 de maio, em Natal (RN), as mais de 30 organizações da sociedade civil (incluindo a Coalizão Direitos na Rede) se lançam no desafio de extrapolar uma discussão que envolve tecnologia, privacidade e vigilância estatal para além do universo dos direitos digitais, e chegar em toda a sociedade brasileira.
De acordo com o site da campanha, é necessário o “banimento total das tecnologias digitais de reconhecimento facial na segurança pública brasileira diante das evidências de seu uso abusivo e pouco transparente. A capacidade de identificar individualmente e rastrear pessoas mina direitos como os de privacidade e proteção de dados, de liberdade de expressão e de reunião, de igualdade e de não-discriminação”.
#TireMeuRostoDaSuaMira também concebe um olhar antirracista para a realidade carcerária do Brasil (a terceira maior do mundo), que tende a se agravar com a expansão do uso dos sistemas de reconhecimento facial pelas polícias brasileiras. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, essa tecnologia já está presente em 20 estados das cinco regiões do país.
Para Raquel Rachid, integrante da campanha e pesquisadora do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um dos problemas das tecnologias de reconhecimento facial é que elas são usadas para o rastreamento de populações — restrição da circulação nos espaços, principalmente públicos, agravando o problema do monitoramento de atividades como as de livre manifestação ou de protesto.
“O sistema penal historicamente marca e persegue alguns grupos, que vemos majoritariamente representados no contexto do cárcere, como é o caso da juventude negra — um dos resultados da política seletiva e infame de guerra às drogas e da criminalização da pobreza. Por nos opormos a essa dinâmica, entendemos que o banimento é a única saída”, contextualiza Raquel Rachid.
“Há, ainda, uma grande preocupação com o fortalecimento de um mercado que opera para a viabilização dessas implementações, o que inclui a desconfiança quanto ao eventual uso secundário dos dados biométricos coletados”, complementa a pesquisadora.
O posicionamento pelo banimento total destas tecnologias, que também realizam perfilamento em seus sistemas, também é defendido por Paulo Mota, mais conhecido como Polinho, epidemiologista na área de ciência de dados populacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador de dados do data_labe, um laboratório de dados no Complexo da Maré (RJ), que também integra a campanha.
“É importante banir o reconhecimento facial da segurança pública porque a tecnologia se desenvolveu incorporando aspectos racistas que a própria sociedade carrega. O problema do reconhecimento facial em específico é que envolve desde as bases de dados de imagens que o algoritmo foi treinado, os algoritmos de aprendizado de máquina que classificam de forma mais acurada apenas rostos de homens brancos, e desemboca na tomada de decisão automatizada ou apoiada pela polícia. Tudo somado ao contexto brasileiro, em que a polícia e todo o sistema judiciário é extremamente racista e lgbqia+ fóbico”, explica.
De acordo com Cynthia Picolo, pesquisadora do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e outra integrante da campanha #TireMeuRostoDaSuaMira, a tecnologia já nasce inadequada porque permite uma vigilância massiva da população em um contexto social em que o racismo é estrutural.
“Os sistemas de reconhecimento facial, em sua maioria, são de iniciativas público-privadas que têm grandes problemas de transparência. Então não sabemos direito nem os caminhos que estão sendo pensados por essas empresas para esses sistemas, que até o momento cerceiam a liberdade de expressão, de manifestação e até mesmo a presunção da inocência sempre para determinadas pessoas — negras, pobres e população LGBTQIA+”, diz.
A campanha #TireMeuRostoDaSuaMira tem sido construída há quase um ano por diversas pessoas e organizações, que se reúnem toda semana para definir ações de incidência para efetivar o banimento das tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública brasileira.
Para que não fique restrita somente aos pesquisadores e ativistas do campo dos direitos digitais, a campanha almeja ampliar o engajamento da sociedade e chegar em novos públicos, como por exemplo, nas trabalhadoras do sexo e trabalhadores informais, além de pessoas diretamente afetadas por essas tecnologias.
Polinho faz um balanço positivo da campanha até este primeiro momento, após o lançamento oficial no FIB 12, apesar de acreditar que a mobilização precisar chegar em mais pessoas, principalmente naquelas que moram longe dos grandes centros urbanos.
“Agora precisamos botar a campanha na boca do povo. No data_labe montamos um grupo que está estudando o assunto. Já programamos o primeiro encontro popular com profissionais do sexo e vendedores ambulantes, na primeira quinzena de agosto, para lançarmos o material do primeiro movimento que faremos na rua. Essa primeira manifestação na rua acontecerá na favela do Jacarezinho, onde o governo do estado do Rio de Janeiro quer gastar R$ 476 mil com a instalação de câmeras de reconhecimento facial. O trabalho não é difícil, ele só acontece de forma lenta porque no Brasil temos a tradição de não informarmos a população periférica”, pontua o coordenador do data_labe.
Seguir com os debates e ações pelo banimento total do reconhecimento facial na segurança pública será uma tarefa contínua das organizações e ativistas ao longo de 2022. Se você tem interesse no tema e pretende colaborar com a campanha #TireMeuRostoDaSuaMira, envie um e-mail para a CDR no contato@direitosnarede.org.br, que encaminharemos para os responsáveis.
Assista ao vídeo de lançamento da campanha #TireMeuRostoDaSuaMira
Por Lígia Bernar (texto) e Enio Lourenço (edição e fotos)