A Coalizão Direitos na Rede, formada por 42 entidades atuantes na defesa dos direitos digitais no Brasil, vem a público manifestar sua preocupação com a vigilância conduzida por meio do sistema Córtex, mantido pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça, e alertar para os riscos aos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.
No dia 21/09, o The Intercept Brasil publicou uma reportagem a respeito do Córtex, descrito como “uma tecnologia de inteligência artificial que usa a leitura de placas de veículos por milhares de câmeras viárias espalhadas por rodovias, pontes, túneis, ruas e avenidas país afora para rastrear alvos móveis em tempo real”.
O sistema também contaria com a capacidade de cruzar as informações coletadas com aquelas presentes em diversos bancos de dados, inclusive de outros entes da administração pública federal, como a Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério da Economia. Um vídeo incluído na reportagem exibe o capitão da Polícia Militar de São Paulo, Eduardo Fernandes Gonçalves, alegando que é possível obter os endereços de todos os funcionários de uma empresa a partir de seu CNPJ. Ainda seria possível acessar dados sobre empregos, salários e dados de deslocamento urbano a partir da placa de um veículo.
Um sistema com tamanho potencial lesivo representa uma enorme ameaça aos direitos e liberdades de brasileiros e brasileiras, incluindo privacidade, autodeterminação informativa, liberdade de expressão, de reunião e de associação. Tal ferramenta poderia ser utilizada, por exemplo, para perseguição política de opositores, um risco inadmissível em um regime democrático. Essa ameaça se agrava quando considerado o cenário de crescimento da vigilância no país, que se leva a cabo por meio de propostas e ações que ampliam o acesso do poder público a dados sensíveis do cidadão sem as devidas garantias e salvaguardas, como o banco de dados multibiométrico do Pacote Anticrime, o Decreto nº 10.046 (Cadastro Base do Cidadão) e as diversas propostas de alteração do Marco Civil da Internet.
E ainda qualquer tipo de opacidade em relação a uma ferramenta dessa natureza é inadmissível e levanta a questão de sua própria licitude. Por esse motivo, cumpre ao governo federal elucidar, no mínimo e com extrema urgência:
a) que dados estão sendo tratados no âmbito desse sistema;
b) a quais finalidades esse tratamento se destina;
c) qual o fundamento jurídico sobre o qual se baseia;
d) que autoridades estão tendo acesso a essas informações;
e) quais são as salvaguardas e mecanismos de segurança estabelecidos para evitar usos indevidos e acesso por terceiros não autorizados.
Ademais, destaca-se que a inaplicabilidade da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que está em vigor desde o dia 18/09, está condicionada ao tratamento em questão se destinar exclusivamente à segurança pública ou a outra(s) exceção(ões) prevista(s) na lei. Desse modo, a eventual demonstração de que os dados em questão também estão sendo tratados para finalidades outras, que extrapolam o escopo excepcionado pela LGPD, atrairia sua aplicação e, em caso de ilicitude, das sanções judiciais correspondentes. A presente opacidade do sistema, em particular quanto a suas finalidades, não permite afirmar o âmbito de aplicação da LGPD às operações de tratamento que o Córtex realiza.
Em todo caso, tal inaplicabilidade seria apenas parcial: de acordo com o art. 4º, §1º, da LGPD, tratamentos de dados para fins de segurança pública ainda devem prever “medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular” previstos na LGPD. Soma-se a isso que essa inaplicabilidade parcial também não afasta outros instrumentos protetivos do sigilo dos dados dos cidadãos, como o Código do Processo Penal, o Marco Civil da Internet, a Lei 12.850/2013 e a Lei 9.296/96. Assim, o acesso pelos agentes de segurança deve estar balizado pelo devido processo legal e pelo respeito aos princípios e garantias constitucionais e infraconstitucionais existentes, assim como os direitos dos titulares de dados.
Diante do exposto, solicitamos que o governo federal suspenda imediatamente as operações do sistema Córtex até que sua conformidade com os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos brasileiros seja exaustivamente demonstrada. Pedimos, ainda, que o Congresso Nacional convoque espaços de debate sobre o tema, a fim de tornar a sociedade brasileira ciente dos riscos aos quais está sujeita frente a uma arma de tamanha gravidade. No cenário atual, o Córtex representa uma tecnologia incompatível com os princípios que orientam a proteção dos dados pessoais e um instrumento para o exercício do autoritarismo, sendo incabível em um Estado Democrático de Direito.