O Governo do Estado do Ceará apresentou, por meio de mensagem à Assembleia Legislativa, um Projeto de Lei que “dispõe sobre o uso compartilhado, em tempo real, com o sistema de videomonitoramento da segurança pública estadual de imagens de câmeras privadas captadas do ambiente externo a imóveis, públicos e privados, situados no estado do Ceará, e dá outras providências”.
O governo justifica a proposta alegando que, “através do compartilhamento de imagens, os órgãos estaduais de segurança pública terão a serviço do cidadão mais uma importante ferramenta para a prevenção e elucidação de crimes”, sendo parte do Programa “Zoom: cidade + segurança”, que tem investido na “instalação de milhares de câmeras de videomonitoramento por diversos municípios cearenses”, de acordo com o texto da mensagem.
Pela proposta, imagens de movimentação em calçadas, ruas e demais logradouros públicos serão permanentemente capturadas e compartilhadas com órgãos de segurança de outras esferas do governo, desde que autorizado pelo órgão estadual competente.
As organizações que assinam esta nota manifestam preocupação e pedem ampliação do debate sobre o tema. A proposta é apresentada justamente no momento em que passam a viger as garantias da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regula o tratamento de dados pessoais, inclusive por pessoa jurídica de direito público, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
A LGPD é um marco na afirmação do direito à proteção de dados em nosso país. De acordo com o artigo 6° da Lei, as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e dez princípios explicitados no texto, entre os quais destacamos: a) finalidade – tratamento dos dados para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular; b) necessidade – limitação do tratamento ao mínimo necessário; c) livre acesso – garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; e d) segurança – utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais contra acessos não autorizados e contra situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão. A proposta do governo do Ceará não aborda de forma apropriada nenhum desses princípios.
Além disso, de acordo com o texto, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
A proteção de dados deve ser ainda maior quando se trata de dados sensíveis. Ora, a imagem de um indivíduo é um dado biométrico, considerado dado sensível pela LGPD. Seu tratamento exige um maior cuidado por parte de quem se propõe a fazer seu processamento, por conter informações muito pessoais e íntimas de uma pessoa. Diferente de senhas, números de telefone e outros dados que podem mudar, a imagem de alguém, seu rosto e suas características físicas são únicas: o tratamento mal feito e o armazenamento não assegurado podem trazer enormes prejuízos irreparáveis.
É fato que a LGPD prevê que tratamento de dados para segurança pública deverá ser abordado em lei específica, que deverá “prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei”. Atualmente uma comissão de juristas formada pela Câmara dos Deputados se debruça sobre o tema, que é da maior complexidade. Não obstante, a Lei deixa claro que esses setores não podem se eximir das garantias por ela previstas, inclusive da observação da proporcionalidade, da necessidade e do devido processo, o que não parece orientar o Projeto de Lei em discussão na Assembleia do Ceará. Além disso, em decisões recentes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a proteção de dados como direito fundamental ao lado das proteções associadas à privacidade, o que informa a atuação do legislador e demanda a consideração dos princípios e fundamentos relativos à disciplina de proteção de dados pelo poder público em suas diferentes esferas.
O projeto estabelece a prática permanente de captura de informações sobre toda e qualquer movimentação na cidade, ferindo a intimidade, a presunção de inocência, bem como as liberdades de reunião e de associação das pessoas. Cria, ademais, um verdadeiro regime de vigilância permanente e desproporcional, sem sequer informar aos cidadãos qual o órgão responsável por essa ação, a forma, a duração e a finalidade da guarda dos dados; os caminhos para que a população possa saber quais dados estão sendo guardados; políticas ou medidas de transparência que permitam exercer e observar direitos, tais como a já referida proteção de dados e outros, como a privacidade.
Não se trata, aqui, de negar a possibilidade de acesso a determinadas imagens. No ordenamento jurídico e na prática, já existem previsões de compartilhamento de informações em investigações de casos concretos. O que se questiona é a naturalização e mesmo imposição – inclusive sem que seja ouvido o contratante do serviço que está, desta maneira, sendo obrigado a financiar um serviço estatal – desse tipo de prática de vigilância ampla, por órgãos não diretamente ligados à prevenção de crimes naquela região. O argumento de que ela pode contribuir com investigações é, portanto, frágil e desproporcional: em casos necessários e informados, a partir de pedidos à Justiça, tem sido recorrente o acesso a imagens, inclusive privadas. Esse caminho nos parece mais adequado aos princípios da finalidade e da necessidade, listados na LGPD, e da proporcionalidade entre direitos.
O texto é também bastante genérico. Por exemplo, o artigo 5o informa que as imagens não poderão ser repassadas a pessoas estranhas à Administração. Mas toda a Administração terá acesso a elas? O texto deixa a entender que sim, o que não parece ser cuidadoso com informações tão importantes, que poderão acabar sendo vazadas caso o compartilhamento e a guarda não ocorram de forma adequada. Ademais, embora informe que as imagens não serão divulgadas em mídias sociais, abre brecha para isso ao permitir “se o exigir o interesse da segurança pública, mediante devida motivação”. São termos abertos e que não apontam a existência de devido processo ou de tomada coletiva de decisão sobre tal interesse.
A proposta deve ser lida à luz do crescente vigilantismo e também da situação da segurança pública no Brasil. Sabemos de problemas como falta de transparência e de controle social, bem como de práticas que se voltam à criminalização de determinados grupos sociais e territórios, a exemplo da juventude negra e de moradores de bairros periféricos, que em geral já são alvos de abordagens que violam direitos, inclusive de ir e vir na cidade. Também são esses grupos e territórios os monitorados por torres e câmeras em Fortaleza, em uma política que fortalece estigmas e não tem reduzido os números alarmantes da violência na capital cearense. As tecnologias não são neutras e podem reforçar preconceitos, como os de raça e classe.
Nesse sentido, é importante destacar o relatório “Discriminação racial e tecnologias digitais emergentes: uma análise dos direitos humanos”, publicado recentemente por E. Tendayi Achiume, Relatora Especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada. Em nota assinada por mais de 80 entidades de defesa de direitos humanos e diversos especialistas de diferentes partes do globo, destaca-se “o apelo da Relatora Especial Achiume para que avaliações obrigatórias de impacto nos direitos humanos sejam pré-requisito para a adoção de novas tecnologias. Também acreditamos que, caso essas avaliações revelem que uma tecnologia tem alta probabilidade de impactos raciais díspares e prejudiciais, os Estados devem impedir seu uso por meio de proibição ou suspensão. (…) Da mesma forma, reiteramos nosso apoio à imposição pelos Estados de uma suspensão imediata do comércio e do uso de ferramentas de vigilância desenvolvidas na esfera privada até que os Estados adotem salvaguardas apropriadas”.
Em várias cidades de todo o mundo, têm sido questionadas políticas com o mesmo teor e até mesmo de menor extensão, como a adoção do reconhecimento facial, o uso de câmeras em lojas e a captura de informações no transporte público. Há, inclusive, pedidos de moratória na adoção de tecnologias voltadas à vigilância, tendo em vista a necessidade de toda a sociedade debater mais seus impactos e os contornos de tais ações. Exemplo disso, em junho de 2020, a IBM anunciou que deixará de pesquisar, desenvolver e oferecer tecnologia de reconhecimento facial, em posicionamento contrário ao monitoramento em massa, à criação de perfis raciais e a violações de direitos humanos. As potenciais consequências danosas e discriminatórias do monitoramento por reconhecimento facial levou a cidade de São Francisco, nos EUA, e mais três outras do Estado da Califórnia, a banirem o uso da tecnologia para fins de vigilância. Tais medidas municipais também tiverem o apoio da relatora Achiume em seu relatório. Desse modo, é preocupante notar que a postura do Governo do Ceará é diametralmente oposta às boas práticas adotadas por algumas empresas e governantes de outras regiões do globo.
Diante do exposto, solicitamos que o Governo do Ceará e a Assembleia Legislativa convoquem espaços de debate sobre o tema, para que a comunidade técnica, a academia, a sociedade civil e a população em geral possam discuti-lo em toda sua profundidade e apresentar propostas pautadas na harmonização de direitos. Ao mesmo tempo, sugerimos ao Governo do Ceará, antes de pautar o projeto de lei em comento, que estabeleça uma política estadual de proteção de dados pessoais, harmonizada com a LGPD, determinando normas e condutas para o governo do estado em relação ao tratamento de dados dos cidadãos e cidadãs cearenses, com as devidas salvaguardas e respeitando os princípios descritos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e na Constituição Federal. Só é possível haver segurança pública em um ambiente democrático mediante o respeito integral a garantias fundamentais.
Assinam esta nota:
Associação Cearense de Imprensa (ACI)
Coalizão Direitos na Rede
Coletivo de Mães e Familiares do Curió
Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-CE
Fórum popular de segurança pública do Ceará (FPSP CE)
Instituto Beta: Internet & Democracia
Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
LAPIN – Laboratório de Pesquisa em Políticas Públicas e Internet
Rede de Observatórios de Segurança
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP – Ceará)
Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Ceará (Sindjorce)
Telas – Laboratório de Pesquisa em Políticas, Tecnologia e Economia da Comunicação (UFC)
Transparência Brasil
Unidade Classista