A medida deve ser tratada como excepcional e deve se restringir ao período de duração da pandemia, uma vez que os recursos devem ser aplicados na universalização do acesso às redes
Cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou nem dispõe de conexão; o Brasil tem uma distribuição desigual das redes de telecomunicações que dão suporte ao acesso à Internet; e tais circunstâncias foram agravadas pela grave crise de saúde e socioeconômica causada pela pandemia de Covid-19. Considerando essas razões, a Coalizão de Direitos na Rede (CDR) — organização formada por 38 entidades e reunindo acadêmicos, organizações da sociedade civil e ativistas pelos direitos digitais — solicita ao Congresso Nacional que os projetos de lei que garantam o uso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para finalidades de apoio emergencial a grupos vulneráveis, legítimos, sejam pautados conjuntamente com os projetos de lei que modificam a Lei Geral de Telecomunicações e a Lei do Fust para garantir sua aplicação na expansão e qualificação das redes de telecomunicações que dão suporte ao acesso à Internet pelos motivos a seguir expostos.
A CDR apoia o uso emergencial do Fust para o subsídio do acesso à Internet a grupos vulneráveis, especialmente dos estudantes, ressaltando, no entanto, que tal medida deve ser temporária. Considerando que o real objetivo do referido fundo é garantir a universalização das redes de telecomunicação, projetos de lei focados na expansão das redes e na melhora da sua qualidade devem ser priorizados em situações não extremas como a pandemia pela qual passamos. Desta forma, a discussão e a aprovação de Projetos de Lei, tais como o PL 172/2020, focados no uso do Fust para expansão e qualificação das redes de telecomunicações com o objetivo de prover maior e melhor conectividade à Internet continuam sendo o precípuo objetivo do arcabouço jurídico-regulatório que ensejou a criação do Fust.
Principais pontos deste posicionamento
- Cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou não têm nenhum acesso;
- A limitada distribuição de rede de telecomunicações no território brasileiro mantém parte da população desconectada e implica em pouca competição onde existe oferta, com consequente impacto nos preços e qualidade, aquém das necessidades da população;
- É legítima a aplicação emergencial do Fust para garantir a conexão dos brasileiros, especialmente dos estudantes, por meio de apoio ao pagamento de serviços, distribuição de equipamentos e instalação de infraestrutura, desde que este uso do fundo esteja limitado ao período da pandemia;
- O Congresso Nacional deve aprovar projetos de lei, como o PL 172/2020, que garantam o uso do Fust para expansão e qualificação das redes de telecomunicações para a realidade da conexão no Brasil começar a mudar desde já.
As redes de acesso à Internet no Brasil e o Fust
A pandemia deixou ainda mais evidente que a marca do acesso à internet no Brasil é a desigualdade. Aproximadamente 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou não têm nenhum acesso [1]. Cerca de 30% dos municípios brasileiros ainda não contam com uma rede de transporte de alta capacidade para permitir oferta com qualidade ao usuário final. Desses, 53% estão localizadas no Norte e Nordeste do país. As redes móveis 3G e 4G ainda não chegam aos distritos afastados dos centros urbanos, situação que é ainda mais crítica nas redes de banda larga fixa, nos quais 55% dos domicílios brasileiros não possuem este serviço[2]. Neste contexto de crise, fica ainda mais clara a essencialidade do serviço de conexão à Internet, conforme já estabelecido pelo Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014). Ou seja, há ainda muito a se fazer para conectar os brasileiros sem deixar os mais vulneráveis para trás, de forma a evitar um aprofundamento das desigualdades que marcam o país. O contexto brasileiro demonstra que não basta apoiar os cidadãos a pagarem os serviços de telecomunicações de suporte ao acesso à Internet – porque esses não chegam a todos, especialmente não chegam a todos com preço e qualidade necessários para que o acesso à Internet cumpra a função de suporte ao exercício da cidadania – e qualquer projeto de lei acerca do Fust deve considerar este fato inconteste.
É por considerar a necessidade de um plano estrutural de ampliação de redes que dê suporte ao acesso universal e também promova a concorrência — com consequente aumento da disponibilidade aos diversos serviços considerados essenciais, redução do preço e elevação da qualidade —, que apontamos para a insuficiência de políticas que se restrinjam a subsidiar o pagamento pela utilização do serviço de conexão a internet no Brasil. Não à toa, após minucioso estudo, a própria Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) descartou o uso do FUST para tal finalidade. O uso de recursos públicos para subsídio do pagamento de contas pelo uso do serviço diretamente ao consumidor, ainda que seja relevante especialmente neste momento de pandemia e isolamento social, se perpetuado representa o abandono das medidas mais eficazes para ampliar os investimentos em novas redes, impedindo a universalização da infraestrutura.
Não há apoio financeiro individualizado que possa resolver a inexistência da disponibilidade de infraestrutura e, consequentemente, oferta de serviços em condições de preço acessível e qualidade adequada. Ainda, tal subsídio pode manter artificialmente os preços de serviços em patamar elevado, uma vez que seriam eliminados estímulos para o surgimento de novos investimentos e de ofertas a menor preço.
A aplicação dos recursos em redes, ao contrário do subsídio direto individual, tende a estimular a concorrência e garantir que serviços como banda larga fixa e móvel cheguem a locais em que retornos das despesas de capital não são atrativos para as operadoras de grande porte. Ressalte-se que a universalização da infraestrutura de telecomunicações tem sido realizada em grande parte pelos prestadores de pequeno porte [3] e pelas redes comunitárias [4], que promovem o acesso à internet nas localidades em que não há oferta adequada à população.
Pelos motivos apresentados, a CDR já se manifestou reiteradas vezes favoravelmente ao anteprojeto de lei produzido pela Anatel [5], que foi aprovado pelo conselho diretor da agência. De acordo com o referido anteprojeto, os recursos do Fust seriam usados prioritariamente para estimular a expansão das redes fixas de alta velocidade por meio de programas, projetos e atividades das políticas governamentais de telecomunicações e da ampliação da oferta de serviços de telecomunicações essenciais. Cabe ressaltar que esta redação já foi protocolada, em todo ou adaptada, em vários projetos de lei, dos quais citamos o PL 4.061/2019 e o substitutivo ao PL 172/2020, este último já aprovado no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, restando apenas a análise pela casa revisora, o Senado, para que se torne realidade.
Medidas emergenciais para acesso à Internet
Por compreender a situação excepcional da emergência de saúde pública, a Coalizão Direitos na Rede apoia medidas emergenciais de suporte econômico por meio da aplicação de recursos do Fust para o subsídio de serviços de telecomunicações essenciais para os consumidores mais vulneráveis. Consideramos que, nesse contexto, a melhor opção é garantir a conectividade dos estudantes de baixa renda, segmento altamente prejudicado pela interrupção das aulas presenciais, o que inclui apoio na compra de equipamento, no pagamento do serviço de acesso à Internet e instalação de infraestrutura onde necessário.
Cumpre lembrar que as desigualdades de acesso à internet, no atual período, tendem a radicalizar as já marcantes desigualdades de oportunidades, em especial entre os estudantes, fato que enseja inclusive as discussões sobre o necessário adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A garantia de acesso à internet de qualidade por todos os estudantes brasileiros é, nesse contexto, uma medida que pode ser relevante para atenuar tais desigualdades e garantir, mesmo que de forma limitada, o direito à educação para todos os jovens, independentemente de sua condição econômica. Ainda que o ENEM seja prorrogado, é necessário avançar em políticas públicas para apoio à educação de qualidade, gratuita e para todos.
De toda forma, tais medidas, apresentadas agora em variadas propostas que tramitam no Congresso Nacional, devem possuir caráter emergencial, restringindo-se ao período de pandemia. Uma vez superada a crise sanitária, os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações devem prioritariamente ser investidos na expansão e qualificação das redes de alta velocidade.
Pelos motivos acima expostos juntamente às medidas de caráter emergencial, entendemos que há urgência em dar seguimento às alterações legislativas em linha com as propostas desenvolvidas pela Anatel para o Fust. Tais medidas contribuirão, inclusive, para que o país possa ter maior resiliência diante de situações extremas, com uma rede melhor distribuída e serviços ofertados a uma maior parcela da população, de acordo com os supracitados projetos de lei. É fundamental, portanto, que não se perca o foco em estratégias que visam a garantia de direitos por meio do acesso universal aos serviços de telecomunicações essenciais, especialmente a conexão à Internet.
Coalizão Direitos na Rede
[2] PNAD Domicílios Contínua de 2019: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101707_informativo.pdf/
e
https://www.teleco.com.br/blarga1.asp/
[3] Disponível em: https://www.minhaoperadora.com.br/2019/11/pequenos-provedores-de-internet-crescem-35-no-ultimo-ano.html/
[4] Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/uma-internet-para-chamar-de-nossa/#tematico-2/