Pela garantia de conexão à Internet no momento mais crítico da pandemia

Documento encaminhado pela Coalizão Direitos na Rede às lideranças dos partidos na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Congresso Nacional. Acesse ao ofício em PDF por aqui

A Coalizão Direitos na Rede, que reúne 38 organizações da sociedade civil, pesquisadores e acadêmicos, acompanhou atenta a votação do Projeto de Lei n° 696/2020, que libera o uso de telemedicina, em caráter emergencial, enquanto durar a crise ocasionada pelo novo coronavírus (Covid-19). A votação por unanimidade demonstrou o empenho dos deputados de garantir e promover o direito à saúde neste momento de pandemia e recomendação de isolamento. Diante de tamanha comoção, viemos por meio desta, no intuito de contribuir com o bom debate sendo realizado e com o andamento dos trabalhos, lembrar que a telemedicina, a educação e trabalho à distância – também a garantia e promoção do acesso à informação e liberdade de expressão – dependem do serviço de acesso à conexão à Internet, não universalizado no Brasil.

No país, 33% dos domicílios estão desconectados, sem conexão inclusive no celular. Este índice é maior no Nordeste (43%), entre os domicílios com renda familiar de até 1 salário mínimo (53%) e de 1 até 2 salários mínimos (34%). Nos domicílios das classes D e E, a desconexão é de 59% [1].

Entre os domicílios conectados no Brasil, 27% acessam a Internet pela conexão móvel via modem ou chip 3G e 4G. Entre as classes D e E, este índice é de 47%. De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 55% das conexões móveis no Brasil operam na modalidade pré-paga, com limites baixos de tráfego de dados. E entre os conectados na modalidade pós-paga, sabe-se que boa parte dos usuários são clientes “controle”, que pagam uma taxa fixa mensal, mas têm um limite, em geral, bastante limitado de tráfego de dados.

Essas conexões limitadas tornam-se ainda mais insuficientes para a garantia de direitos no momento de redução da renda familiar e limitação do deslocamento que, em geral, permite a conexão em locais sem limites de navegação, no trabalho, em Wi-Fi público ou no comércio.

Não fosse a já estrutural limitação do acesso à Internet no Brasil, diante de restrições e mesmo ausência de renda, é de se prever a elevação da desconexão no país. E mais, que as restrições de navegação impostas pelo modelo de franquia de dados, especialmente na banda larga móvel, sejam ainda mais duras e impliquem no impedimento de conexão de boa parte da população, inclusive para usufruir do serviço de telemedicina.

É neste sentido que a Coalizão Direitos na Rede aponta para a importância desta casa votar, como medida emergencial, a garantia do acesso da população aos serviços de telecomunicações e, em especial, à conexão à Internet fixa e móvel, mesmo em caso de atraso de pagamento, eventual inadimplência ou atingido o limite da franquia, sendo alternativa adequada a redução da velocidade, até o final efetivo da crise.

Cabe ressaltar que, nos Estados Unidos, mais de 60 provedores de conexão a Internet assinaram o compromisso com o órgão regulador das comunicações daquele país “Keep America Connected”, em que se comprometem a não encerrar o serviço para clientes residenciais e proprietários de pequenas empresas que não podem pagar suas contas devido a interrupções da pandemia de coronavírus, renunciarão a cobrar temporariamente taxas atrasadas causadas pela crise e abrirão seus pontos de acesso Wi-Fi a quem precisar deles. Estão, mais do que isso, tomando medidas adicionais. As empresas de conexão fixa elevaram as velocidades de conexão à Internet e suspenderam as franquias de dados. Cabe ressaltar que nos Estados Unidos as redes de conexão fixas estão mais bem distribuídas do que no Brasil. No caso das redes móvel, a provedora de conexão T-Mobile, uma das maiores do país já anunciou a liberação das franquias de dados. Empresas estão ainda oferecendo conexões para novos clientes com dois meses grátis e Internet gratuita para os domicílios cadastrados como de baixa renda ou aqueles que reúnem estudantes.

Em âmbito internacional, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), órgão da ONU, já vem atuando em várias frentes para mitigar e recomendar boas práticas para a continuidade dos serviços de telecomunicações de forma mais solidária para a população que está sofrendo ainda mais com as determinações para contenção da pandemia [2].

No Brasil, somos signatários da Convenção de Tampere sobre o Fornecimento de Recursos de Telecomunicações para Mitigação de Desastres e para Operações de Socorro que resultou na Resolução 656/2015 – Regulamento sobre Gestão de Risco das Redes de Telecomunicações e Uso de Serviços de Telecomunicações em Desastres, Situações de Emergência e Estado de Calamidade Pública – que tem por objetivo exatamente garantir a continuidade dos serviços de telecomunicações e radiodifusão em situações de calamidade pública e emergência [3].

O Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014, estabelece em seu artigo 4º que a disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção do direito de acesso à internet a todos e do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos. Ainda, no artigo 7º dispõe que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e que a suspensão da conexão apenas pode ocorrer em casos de por débito diretamente decorrente de sua utilização – e não por limite de franquia. Não há dúvida que o pagamento do serviço prestado é fundamental para a manutenção e continuidade do fornecimento adequado da conexão à Internet. Contudo, em situações extremas, como no caso de pandemia, é aplicável a teoria da imprevisão com a revisão contratual, possibilitando o pagamento a destempo independentemente de quaisquer sanções, como o corte de fornecimento, juros e multa.

Ainda assim, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) apenas informou à imprensa [4] que a definição pelo Decreto 10.282/2020 de telecomunicações e Internet como serviços essenciais, na semana passada, não obriga as empresas a manterem o atendimento de clientes que deixarem de pagar as contas, de forma que, pela inércia do Executivo, cabe ao parlamento um aceno aos cidadãos para garantia de direitos também neste caso.

Empresas provedoras de conexão e Anatel firmaram compromisso público genérico para “Manutenção do Brasil Conectado” [5] em que, de concreto, há apenas previsão de que os serviços continuarão funcionando e que farão de tudo para que os boletos cheguem aos clientes: “vão adequar os mecanismos de pagamento das faturas”. A Anatel afirma que priorizará soluções emergenciais que tenham por principal objetivo a continuidade do serviço e seu acesso pela população brasileira, sobrepondo-as às regras criadas para momentos de normalidade, mas nada de concreto foi feito até o momento para que os brasileiros possam estar conectados.

Certos de contar com a atenção e atitude enérgica dos parlamentares para a questão da conexão à Internet dos brasileiros neste momento de pandemia, nos colocamos à disposição também para discutir projetos que podem fortalecer e ampliar as redes de telecomunicações no país, especialmente nas áreas mais necessitadas.


1-Dados da pesquisa TIC Domicílios realizada em 2018 e divulgada em 2019, produzida pelo Núcleo da Informação e Comunicação do Comitê Gestor da Internet no Brasil, de acordo com critérios estabelecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Disponível em: https://www.cetic.br/tics/domicilios/2018/domicilios/A4/

2-Disponível em: https://www.itu.int/en/ITU-D/Regulatory-Market/Pages/REG4COVID.aspx

3-Disponível em: https://www.anatel.gov.br/legislacao/resolucoes/2015/831-resolucao-656

4-Disponível em: http://www.telesintese.com.br/decreto-que-define-telecom-como-servico-essencial-nao-impacta-inadimplentes-diz-mctic/

5-Disponível em: https://cloud.anatel.gov.br/index.php/s/8aoskA8lIvxH5Gg