Por uma Lei de Direitos Autorais que afirme direitos digitais, pluralismo e democracia

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) é uma rede de entidades que reúne mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação a questão do acesso à Internet e a proteção dos direitos à liberdade de expressão, proteção de dados pessoais e privacidade na rede. 

Como parte de nosso duplo esforço em salvaguardar direitos humanos e regular o poder econômico de plataformas digitais, apresentamos esta nota pública em contribuição ao debate sobre o Projeto de lei n. 2370/2019, de autoria da Deputada Jandira Feghali, que propõe reformas na Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira, para atualizá-la ao novo contexto da Internet. Nosso objetivo é oferecer análises e sugestões com base nas propostas ventiladas durante a negociação do texto substitutivo preparado pelo Deputado Elmar Nascimento. 

Novos temas na reforma da Lei de Direitos Autorais, novas preocupações para direitos digitais 

O PL 2370/2019 ganhou novo fôlego após pressão de setores sociais para que o debate legislativo sobre regulação de plataformas digitais abarcasse o dever de  remuneração de em favor de titulares de direitos autorais pela “utilização de suas obras”. Após o tema passar pelo projeto de lei nº 2630/2020 – conhecido como “PL das Fake News” – negociações entre parlamentares impulsionaram o retorno do PL 2370/2019, renovando o debate sobre a reforma da Lei de Direitos Autorais.

Esta movimentação suprimiu temas relevantes e incluiu no projeto algumas novidades preocupantes. De um lado, novas versões do texto suprimem importantes previsões que o texto original da proposta havia contemplado, como obras órfãs (aquelas cuja titularidade não é identificada ou cujos titulares não as exploram), e limitações e exceções a direitos autorais para finalidades de pesquisa ou preservação do patrimônio cultural (cujo  efeito positivo para a sociedade tem sido empiricamente demonstrado[1]). 

Do outro lado, esse novo fôlego traz desafios adicionais: para além da remuneração de titulares pela utilização de suas obras na Internet, abordando problemas como a remuneração por direitos de músicos executantes em plataformas de streaming. As propostas que ganharam tração após as negociações posteriores ao tema terem passado pelo “PL das Fake News” incluíram no PL 2370/2019 o tema da remuneração pelo conteúdo jornalístico por parte das plataformas digitais. As mudanças também envolveram outros pleitos, ligados a demandas de bancadas específicas, refletidas em menções sobre a proteção de obras de natureza religiosa.

A Coalizão Direitos na Rede defende que esse debate seja realizado com equilíbrio e atenção, a fim de  afirmar direitos, tanto de quem usa as plataformas, como de quem produz as obras ou atua na sua execução. Nesse sentido apontam relatórios e estudos produzidos por instituições e pesquisadores de muito respeito na área, incluindo o Instituto Max Planck para Inovação e Concorrência e o Relatório Hargreaves, produzido a pedido  do primeiro-ministro do Reino Unido[2].

Parte do referido  equilíbrio consiste em um esforço para: (i) não inviabilizar o compartilhamento comum de conteúdos na Internet ou transformá-la em um negócio restrito a atores com certa capacidade econômica, aproximando o ambiente digital dos modelos tradicionais da indústria cinematográfica e musical; (ii) reconhecer e proteger legítimas limitações e exceções aos direitos autorais que favoreçam a sociedade e o acesso ao conhecimento; e (iii) salvaguardar direitos humanos de usuárias e usuários de internet, como a liberdade de expressão.

Nessa conjuntura e com estes pressupostos, a Coalizão Direitos na Rede apresenta uma série de considerações técnicas ao relator do projeto e demais parlamentares. Nossa intenção é  que a sociedade brasileira encontre o equilíbrio necessário neste esforço de atualização legislativa.

É necessário reconhecer direitos autorais protegendo direitos digitais

Sobre os pontos atinentes à própria reforma da Lei de Direitos Autorais, alguns pontos dos textos propostos no último mês saltam aos olhos para a garantia do equilíbrio e proteção de direitos mencionados acima.

Não devem ser suprimidos pontos importantes sobre limitações e exceções aos direitos autorais e obras órfãs, presentes na proposta original. Apesar de alguns acertos, é lamentável que esses aprimoramentos sejam realizados ao mesmo tempo que não só se ignora, mas até mesmo se enterra, tantos outros tópicos que caberiam em uma reforma da Lei de Direitos Autorais que pudesse ser considerada minimamente razoável. Lembramos que essa reforma é tentada há muito tempo, com diversos processos interrompidos nos últimos 20 anos. A atualização era considerada urgente já nos anos 2000, diante de uma legislação que é quase consensualmente vista como defasada, começando a ser concebida a partir do final da década de 1970 e promulgada em 1998 – quando a Internet ainda estava começando a se consolidar no país. O substitutivo parece cometer um equívoco não só por sua tentativa de ser maximalista nos conceitos e abarcar o máximo possível de situações em seu teor, mas também por criar um sistema novo de remuneração sem estudo anterior ou investigação de impacto.

Necessidade de maior definição de quem deve arcar com a remuneração por direitos autorais, focando em organizações com finalidade econômica, porte e exploração comercial

O art. 5º, XV, é, aparentemente de forma proposital, bastante amplo. Todas as empresas que tenham alguma atuação na Internet, independentemente de seu tamanho ou finalidade, são agrupadas na mesma categoria, resultando em um tratamento uniformizado para um pequeno blogueiro sem fins lucrativos e uma multinacional de streaming ou de rede social que utilize intensivamente obras intelectuais em seus serviços ou produtos.

O art. 88-A, caput, cria uma abertura perigosa para inviabilizar, dentre outros exemplos, serviços  online colaborativos e que permitam uma maior contribuição de usuários, como fóruns e wikis. Ele também afeta negativamente a Internet como um meio de troca de informações e obras lícitas, por tornar necessária uma assessoria jurídica para que a pessoa leiga possa colocar com segurança qualquer tipo de obra na Internet.

Obras de natureza religiosa já estão protegidas e não devem ser diferenciadas de outras obras protegidas por direitos autorais. O art. 7º, II, que protege obras de natureza religiosa, pode abrir espaço para abuso no exercício do direito autoral, na medida que sem a disposição a obras destes temas já seriam normalmente protegidas pelos direitos autorais, desde que fossem caracterizadas, como qualquer outra obra, por um grau mínimo de criatividade (ou seja, originalidade subjetiva).

Pontos positivos 

Evidentemente, o substitutivo também apresenta diversos pontos positivos, especialmente nos objetivos que almeja atingir, como tentar atender à antiga demanda de artistas do setor audiovisual em ter direitos equiparados aos do ramo musical é não só louvável, como algo que já deveria ter sido calibrado e implementado.

É também um avanço, em relação a outras versões sugeridas, que os titulares não sejam obrigados a exercer seus direitos por meio de associações de gestão coletiva de direitos autorais. Os dias compreendidos estão coletiva, considerando os problemas que ainda caracterizam essas entidades no Brasil.

Preocupações com os novos dispositivos sobre a remuneração de conteúdos jornalísticos: o que se quer proteger? 

Fortalecer o jornalismo de interesse público por meio de políticas, planos e programas de gestão administrativa, como uma nova fonte de receitas para o setor, é um ponto que merece discussão.Uma sociedade democrática e protetiva a direitos humanos se constrói com uma imprensa pujante, plural, livre e sustentável. Neste ponto, a preocupação da Coalizão Direitos na Rede é que o desenho da regulação tenha aderência com esses objetivos, protegendo jornalismos operados por organizações de diversos tipos e tamanhos, preocupadas em valorizar seus profissionais e em produzir conteúdo a partir de critérios éticos. Isso implica dizer que o reconhecimento de um dever de remuneração não deve ser construído como uma brecha para que modelos de negócio predatórios, caça-cliques ou sensacionalistas sejam ainda mais privilegiados no ambiente digital.

Conforme a nova proposta legislativa, o assunto será inserido dentro do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Neste ponto – e partindo dos pressupostos acima -, sugerimos o seguinte:

Definir melhor o conceito e as características do “provedor”. Sobre o parágrafo único do art. 5: novamente o substitutivo faz uma definição muito ampla do que é um provedor, ignorando também qualquer diferenciação de porte. 

  • Ofertar um serviço na Internet, especialmente após a pandemia, é algo feito pela grande maioria das empresas, ainda que isso seja absolutamente secundário em suas atividades, e pode enquadrar ainda iniciativas auto-geridas de usuários que tenham algum tipo de pequeno retorno financeiro (como o uso de ads). Em verdade, sequer a necessidade de fins econômicos consta da redação atual do parágrafo único. 
  • A obrigação prevista nos artigos 21-A a 21-E deveria estar restrita às grandes plataformas de Internet, como faz o PL 2630/2020, ou pelo menos a atores que utilizem o material jornalístico com algum intuito de lucro direto ou indireto, sob pena de consolidar ainda mais a centralização da rede em poucos e gigantes agentes econômicos. 

Resgatar o comando sobre regulamentação da obrigação, a ser realizada posteriormente. O tema tem direta ligação com os seguintes pontos do proposto no art. 21-A, que suprimiu-se o trecho, existente em versões anteriores, que dizia “na forma de regulamentação”. Essa supressão é criticável, visto que o dispositivo presente no substitutivo não é capaz de abarcar totalmente a complexidade futura na forma inovadora de remuneração do jornalismo por plataformas digitais que está sendo proposta.

Revisão sobre o comando que impede que provedores removam conteúdo jornalístico. O §4 foi criado no contexto do PL 2630/2020 e perde seu sentido no substitutivo, que não trata mais de desinformação, efetivamente criando uma barreira para que as plataformas tirem do ar conteúdos desinformativos. Além disso, o dispositivo é claramente inconstitucional, por violação do princípio da livre iniciativa, ao tentar obrigar uma escolha de negócios que as plataformas podem considerar inadequada. Caso a remuneração de jornalismo seja implementada, é absolutamente legítimo que essas empresas entendam que o compartilhamento de conteúdo jornalístico na sua plataforma é mais prejudicial que benéfico para a adequada prestação dos seus serviços, bloqueando esse tipo de compartilhamento específico para evitar riscos ou gastos de implementação dos sistemas de fiscalização que seriam necessários.

Maior cuidado com mecanismos de segurança indispensáveis aos usuários, como a criptografia de ponta a ponta. A atual redação do § 8° parece criar obrigação para que os serviços de mensageria instantânea fiscalizem comunicações privadas para verificar a ocorrência de conteúdo jornalístico postado por terceiros se houver fins econômicos neste compartilhamento. Isso termina por estabelecer uma obrigação de monitoramento das conversas privadas para buscar a “finalidade econômica” e os conteúdos compartilhados, na contramão da garantia constitucional do sigilo das comunicações e minando proteções inscritas na arquitetura de serviços baseados em criptografia de ponta-a-ponta.

Necessidade de revisão dos critérios para remuneração para promover jornalismo de interesse público, e não sensacionalismo. O art. 21-B coloca péssimos critérios se o objetivo desse sistema, consoante o §13 do artigo anterior, seja fortalecer o jornalismo e valorizar os jornalistas. Este é um dispositivo que é cristalinamente voltado para grandes veículos midiáticos, colocando apenas critérios qualitativos que podem, inclusive, ser abusados por mídias sensacionalistas ou até desinformativas, especialmente quando se lembra que o PL 2630/2020 ainda não foi aprovado.

Outras mudanças no Marco Civil da Internet: publicidade e regulação de plataformas

Recentes propostas sobre a reforma da LDA também incluem no Marco Civil outros temas antes presentes na discussão de regulação de plataformas digitais carreada pelo PL 2630/2020, como regras para a publicidade digital. Sobre estes pontos a Coalizão também apresenta suas sugestões:

Adequação da obrigação de identificação da conta do anunciante. Consideramos mais adequado que a identificação seja da conta do usuário responsável pelo impulsionamento ou do anunciante, o que não impede a sua efetiva identificação mediante ordem judicial. A redação atual abre margem para a interpretação de que a identificação do anúncio deveria conter o nome do anunciante conforme seu documento de identidade, o que pode ser problemático tendo em vista as diferenças entre nome social e nome de registro e riscos de perseguição. O 21-E, III parece estar em linha com a sugestão acima e, sendo assim, deve fazer referência ao art. 21-C e não ao art. 4º,  aparentemente do próprio MCI, que não faz sentido algum no contexto em que foi inserido.

Por fim, a ampliação da competência do CADE para fiscalizar todos os atos de infração à ordem econômica na área de remuneração ao jornalismo é também muito bem vinda, embora pudesse ser também ampliada para o novo dispositivo sobre direitos autorais.

Conclusão

A Coalizão Direitos na Rede sugere que o substitutivo do PL 2370/2019 seja melhor debatido com a sociedade antes da sua discussão no Plenário da Câmara, a fim de que os pontos indicados na presente nota sejam resolvidos e o texto aprimorado. Isso não só ajudaria a melhorar muito a sua qualidade, como não adiaria por mais longos anos qualquer possibilidade de uma já urgente reforma real da Lei de Direitos Autorais. Ademais, garantiria que os novos temas nela incluídos afirmassem direitos e a promoção do pluralismo e democracia.

Ainda, a supressão do restante do texto da reforma que está tramitando acabaria por descartar, por um lado, disposições que ajudariam a resolver ambiguidades da LDA e, por outro, alterações benéficas que estavam previstas e que são comuns em legislações mais avançadas de direitos autorais.

[1] Cf., p. ex., https://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=109192, https://www.create.ac.uk/publications/copyright-and-the-regulation-of-orphan-works/ e https://digitalcommons.wcl.american.edu/research/98.
[2] https://www.copyrightevidence.org/wiki/index.php/Hargreaves_(2011)


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