Crise nas escolas: resposta do Estado brasileiro deve partir de um esforço conjunto de todos os Poderes

Brasilia, 17 de Abril de 2023

A Coalizão Direitos na Rede (CDR) é uma rede de entidades que reúne mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação a questão do acesso à Internet e a proteção dos direitos à liberdade de expressão, proteção de dados pessoais e privacidade na rede

Apresentamos esta nota pública como forma de contribuição ao debate envolvendo os recentes e odiosos ataques a escolas no Brasil e a recém editada portaria 351/2023 do Ministério da Justiça e Segurança Pública que visa requisitar a devida aplicação de medidas de moderação de conteúdos e a proativa identificação de posts e perfis responsáveis por incitar atos violência e massacres. Neste momento de profunda preocupação, a CDR expressa solidariedade a todas as famílias e pessoas afetadas. O potencial de ataques às instituições de ensino – bem como das agressões graves contra crianças e adolescentes, além de educadoras e educadores – demanda ações rápidas a fim de que as escolas sejam espaços de paz, convívio e aprendizado na diversidade. Tais ataques representam o triste escalonamento da violência que observamos no Brasil nos últimos anos. Esse cenário de medo não deve ser normalizado. 

A necessidade de proteção de crianças e adolescentes expostos aos possíveis e anunciados ataques é real, especialmente quando plataformas digitais continuam deliberadamente ignorando a urgência em implementar melhores mecanismos de moderação de conteúdos nos países do sul global, a exemplo do Brasil. Conteúdos como apologias a violência nas escolas e riscos à integridade física de membros da comunidade escolar não só violam os próprios termos de uso e políticas de governança de conteúdo dessas plataformas, como configuram violações às leis vigentes e merecem a devida atenção. Sabemos também que as plataformas têm dado projeção a conteúdos violentos e produzido bolhas que dificultam a exposição das pessoas às opiniões diversas, o que guarda relação com o crescimento e a organização do pensamento conservador. 

A CDR entende, portanto, que medidas para impor mais transparência e prestação de contas sobre o funcionamento e a moderação de conteúdo pelas plataformas assim como sobre a responsabilização de quem publica e favorece a disseminação desses conteúdos são necessárias. No entanto, reforçamos que o Congresso Nacional é o espaço mais competente para discutir respostas complexas a tais problemas – como já está ocorrendo no contexto do Projeto de Lei 2630/2020. 

Na última quinta-feira, 13 de abril, o Ministério da Justiça e Segurança Pública editou portaria contendo uma série de medidas administrativas  “para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais”. Em poucas palavras, o texto em questão visa instituir obrigações relativas a um dever de cuidado para obrigar plataformas digitais a moderar conteúdos que contenham apologia ou ameaça de ataques a escolas, institui uma base de dados de conteúdos considerados ilegais, limita a criação de novos perfis advindos de endereços de IP que tenham disseminado conteúdos ilegais e incentiva a adoção de avaliações de risco sistêmico por parte das plataformas. 

Ao incentivar a adoção de um dever de cuidado e de análises de risco sistêmico por plataformas digitais, a portaria em questão adota termos e conceitos que ainda estão em discussão no âmbito do Congresso Nacional. Além disso, na ausência de processos definidos e de um órgão regulador que acompanhe o setor, as medidas resultaram na criação, pelo governo federal, de um mecanismo de notificação e retirada de conteúdos (notice and take down) unilateral. Ao mesmo tempo, prevê sanções que podem chegar à suspensão do funcionamento de serviços no país caso os conteúdos notificados pelo governo não sejam removidos pelas empresas. 

Tal mecanismo, na prática, inverte o atual regime de responsabilidades de redes sociais previsto no Marco Civil da Internet (MCI). A CDR entende que, sim, é preciso ir além das previsões normativas estabelecidas em 2014 no Marco Civil da Internet, mas frisa que possíveis atualizações e aprimoramentos ao texto devem ser feitas pelo Congresso Nacional e via a adoção de instrumentos legais adequados, democráticos e que realmente resultem nas melhorias que a sociedade demanda. 

Ao propor que plataformas digitais também tomem medidas de o compartilhamento dos dados que permitam a identificação do usuário ou do terminal da conexão com a Internet daquele que disponibilizou o conteúdo e o estabelecimento de um banco de dados de conteúdos identificados como ilegais, a portaria acaba legitimando e incentivando o monitoramento geral de conteúdos por parte das plataformas digitais e violando o princípio de minimização da coleta de dados pessoais presente na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). 

A determinação de medidas que maximizam mandatos para a coleta de dados pessoais de usuários da Internet por parte das plataformas digitais gera preocupações porque pode legitimar a continuidade dos abusos por parte destes atores. Isso ao mesmo tempo em que o Brasil promulgou a adesão à Convenção de Budapeste, que  tem sido denunciada – desde a sua concepção – pela  falta de proporcionalidade no tratamento de dados pessoais e na proteção de direitos humanos online. 

Entendemos que o momento atual demanda soluções urgentes. Mas já existem no ordenamento jurídico brasileiro medidas capazes de promover a devida identificação dos perpetradores e redes responsáveis pela propagação e compartilhamento de conteúdos relativos a ataques – passados ou futuros -, e também para determinar a remoção de conteúdos violadores de direitos fundamentais. Reconhecer e utilizar o Judiciário em ambos os processos é relevante para que não sejam abertos precedentes perigosos, que ampliem poderes de governos do momento sobre direitos como liberdade de expressão e proteção a dados pessoais. A preocupação se mostra ainda maior ao notarmos que a Portaria 351 não se restringe a conteúdos publicados no contexto da crise de segurança das escolas e tampouco tem prazo determinado para vigorar.  

Entendemos que as leis utilizadas pelo Ministério da Justiça para balizar sua portaria – como o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e Código Civil – podem e devem ser consideradas pelo Estado para a análise do serviço prestado pelas redes sociais no país. A legislação consumerista se aplica também ao ambiente virtual e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) possui competência para atuar em relações de consumo também nesse espaço, especialmente quando a Portaria faz menções à requisição de informações. Entretanto, preocupa a utilização do CDC para fins de moderação de conteúdo, em especial quando temos uma discussão em andamento no legislativo, contando inclusive com contribuições diretas do próprio Ministério e de outros órgãos do governo.

Num contexto em que buscamos com muito esforço uma regulação democrática das plataformas de redes sociais no âmbito do Parlamento, a resposta a ser dada pelo Estado brasileiro à grave crise nas escolas deveria partir de um esforço conjunto de todos os poderes, de modo a ir além de uma postura reativa, observando ainda a necessidade de criação de um modelo regulatório robusto voltado ao setor, algo fundamental para fortalecer os pilares da democracia brasileira – ao invés de enfraquecê-la.

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